Meu primeiro Drummond foi o Drummond político, de flor e estrela rubras, fora do colégio. Agora lembrando disso, revejo os Drummonds que havia em casa e me dou conta de que eram os menos afamados, os mais íntimos: poeta que falava de orgasmos, poeta que se despedia. Meu primeiro Baudelaire, também fora do colégio, foi o poema “A carniça”, bem naquela época da adolescência em que o repugnante e o terrível são coisas que fascinam. O primeiro Camões lírico, igual ao de muita gente, foi o do fogo que arde sem se ver. Nos tempos de faculdade, quis uma professora...
Franz e Georges ou dois grãos de milho
Há um lugar na literatura em que os grandes viram grãos de milho. Aqueles altos sobrenomes de lombada dão lugar à miúda letra manuscrita. É quando Kafka escreve para o pai e se torna Franz, o filho de Hermann. É quando Simenon escreve para a mãe e se torna Georges, o filho de Henriette. Um pai e uma mãe, diz Simenon, “são dois indivíduos cujos gestos, cujas palavras, cujos olhares são julgados impiedosamente”: há na casa uma criança que os observa. Kafka é essa criança impiedosa quando escreve para o pai. Já um homem, mas um verme aos pés do...
O Mário de Andrade dos meus dezesseis anos
Quando Manuel Bandeira leu o primeiro livro de poemas de Mário de Andrade (publicado há exatamente um século), não teve dúvidas: era um livro ruim. Mas esse ruim não era – digamos – um ruim consabido, evidente, definitivo. Era diferente. Era um “ruim estranho”. Foi aí que Bandeira farejou qualquer coisa a mais que não deixava o tal mau livro passar em branco. Eu era menina quando abri o livrão da poesia completa de Mário, ainda sem saber que a capa de arlequim estava lá para lembrar a primeira edição de Pauliceia desvairada. Livrão da biblioteca da mãe cheio de...
Lendo Tonino Guerra
Tonino Guerra voltava para sua aldeia depois de velho. Mais de trinta anos a respirar o ar de Roma e então, um dia, como na infância antes da guerra, as montanhas, o canavial, o rio, o mel das abelhas selvagens. Conhecia de menino o vale do Marecchia e com alma de menino foi arrepanhando suas histórias. A vida, sendo simples, levava a imaginar. Um copo com água de chuva e a alma do menino sente o gosto dos relâmpagos.
Uma vida entre amigos
Os livros que pela primeira vez amei eram livros da biblioteca do quarto da mãe. Livros de poesia que me chamavam pelo título, pela capa, por uma página aberta ao acaso. Mário de Andrade. Neruda. Baudelaire. Fernando Pessoa. Maiakóvski. Cecília Meireles. Emily Dickinson. T. S. Eliot. Drummond. Dante. Brecht. Lorca. Assim todos misturados. Depois vieram romances, amores de Alexandria, amores do tempo de Salomão, dos tempos do cólera, guerras do tempo de Nabucodonosor, das colônias, dos impérios, sagas de família, histórias passadas em paisagem de neve, em noites do sertão, nos desertos, na noite das cidades, em quartos alugados, becos,...