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Os povos indígenas e a identidade nacional

O escritor Daniel Munduruku é uma das vozes mais ativas na divulgação da história dos povos originários, principalmente na escrita de livros voltados às crianças e aos jovens. Em mais de 50 títulos publicados, alguns deles traduzidos para outros idiomas, resgata as tradições de inúmeras comunidades indígenas de todo o país, oferecendo aos leitores um contraponto ao que normalmente se aprende na escola sobre esses povos.

Em uma conversa franca para o projeto “A arte de fazer livros”, Munduruku comenta a importância das artes para a preservação da cultura das populações indígenas e reflete sobre a formação da juventude a partir da valorização da ancestralidade.

Hoje se menciona tanto o lugar de fala. Por que demorou tanto tempo para que os povos originários tivessem o direito de contar suas histórias?

Os indígenas eram considerados, de certa forma, pessoas de fora da sociedade brasileira. Há muito tempo, desde 1500, são tidos como uma espécie de empecilho para o crescimento do Brasil, do ponto de vista econômico, ainda que pelo viés social não, porque nesse aspecto o país nunca cresceu. Os povos indígenas passaram a ter visibilidade a partir de 1988, com a aprovação da nova Constituição. Foi a primeira vez que o Estado se posicionou a respeito dos povos originários fora de um processo de assimilação ou de integração, como queriam os militares. Só naquele momento começaram a olhar para os indígenas como brasileiros de fato. Obviamente, não foi uma caridade, mas uma luta social que os indígenas fizeram com a participação da sociedade civil organizada. Essa mudança fez com que os indígenas não fossem mais retratados como indivíduos atrasados, mas como parte da sociedade. Até 1988, estávamos fadados ao desaparecimento. O movimento indígena surgiu com o Mário Juruna, o Marcos Terena, o Álvaro Tukano e o Manuel Moura Tukano. Vários nomes daquele primeiro momento produziram um discurso de independência, que só foi se concretizar com a Constituição, quando se reconheceu que os indígenas não deveriam ser integrados, mas autônomos, cabendo ao governo oferecer condições para que essa autonomia acontecesse. A partir de então, nasceu o indígena brasileiro ou o brasileiro indígena. Costumo afirmar que sou um brasileiro nascido munduruku para dizer que até 1988 me era negada a cidadania brasileira. Quando os povos originários conquistam o direito de ser cidadãos, eles se impõem para essa mesma sociedade, construindo uma participação mais qualificada, que tem muito a ver com a formação adquirida. Foi nesse momento que os jovens se prepararam nas universidades para que tivessem direito à voz, que foi crescendo à medida que foram incorporando à sua cultura outros conhecimentos. Esse direito à voz foi uma conquista que se deu por meio de uma luta social e política.

José de Alencar e Mário de Andrade foram alguns dos escritores que retrataram o índio brasileiro. Quais são os diálogos possíveis que podem ser estabelecidos entre a literatura indígena e esses clássicos? E quais foram os equívocos cometidos?

Durante toda a nossa história colonial, os povos originários foram vistos de forma equivocada. O colonizador precisava convencer a sociedade de que o indígena era um estorvo e, para isso, construiu uma imagem distorcida, preconceituosa e racista que até hoje não se consegue vencer. Essa imagem vem do sistema colonial brasileiro, portanto da estrutura. Nesse sentido, podemos pensar que há um racismo estrutural que foi devidamente imposto e desqualificou completamente os índios como sujeitos. Foi aí que se criou todo o imaginário que aparece nos documentos oficiais e na literatura. A literatura nem sempre é um grito político, muitas vezes é um apelo estético. Só que a maioria dessas pessoas que tinham condições – e você sabe que a literatura sempre foi produzida por uma elite – era formada com uma cabeça europeia. Muitos dos grandes literatos brasileiros estudavam fora e depois voltavam para o país, buscando encontrar sua identidade como escritores, elegendo pautas, inclusive identitárias, e fazendo referência às culturas dos povos originários. O José de Alencar produziu personagens que tinham a ver com o imaginário europeu, como o índio ligado à ideia do cavaleiro, do bom selvagem. Criou uma visão romântica, um tanto distorcida, que alimentou todo o ideário brasileiro até a Semana de Arte Moderna em 1922 e o canibalismo às avessas que o Mário de Andrade usou para construir o Macunaíma, uma entidade dos povos de Roraima. Não foi algo que o escritor paulistano tirou do nada, mas vinha das descobertas – um modo de dizer, claro – que o SPI, o Serviço de Proteção ao Índio, fazia no encontro com os povos indígenas. É bom lembrar que estávamos no início da República, que queria unir o Brasil de norte a sul. A visão das pessoas que fizeram a Semana de Arte Moderna era alimentada pelas informações que o Marechal Rondon trazia sobre os povos isolados. Foi com base nelas que os modernistas construíram uma nova relação com os indígenas – ainda pelos olhos do colonizador. Quando aconteceu a Semana de 1922, a República tinha pouco mais de 30 anos. As pessoas não entendiam a diversidade étnica. Os indígenas não tinham voz para falar de si mesmos. Foi por volta de 1930 que foi criado o Dia do Índio, que tinha muito a ver com o SPI, com a Semana de Arte Moderna e com uma resistência que estava começando a aparecer em toda a América Latina. Aí se estabeleceu uma data para comemorar uma figura que só existia no imaginário das pessoas. A literatura foi sendo construída por um olhar equivocado, um olhar hegemônico, que colocava o indígena em rota de colisão com o resto da sociedade. Salvo raras exceções, a literatura nunca foi muito favorável às populações indígenas. No Brasil, a mudança só começou depois dos anos 1940, quando apareceram mais pesquisas específicas sobre os índios. Mesmo assim, ficavam restritas à academia, não alcançavam a população. Até esse momento, tudo o que se sabia era trazido pelo governo por meio do SPI. Em 1964, os militares deram o golpe e, em 1967, acabaram com o SPI, criando a Funai, que nasceu com o objetivo de fazer a integração do índio. Assim, os militares justificavam os megaprojetos que queriam realizar, como a Rodovia Transamazônica, as hidrelétricas, a exploração mineral, a expansão da fronteira agrícola. O que se queria mesmo era apagar a memória e a presença indígena da história do Brasil. Os indígenas deveriam deixar de ser indígenas e passar a ser brasileiros apenas, mas surgiu, na década de 1970, um movimento que não deixou que isso acontecesse. Nessa época, profetizava-se que os indígenas não chegariam aos anos 2000, afinal aquele processo de integração era um verdadeiro genocídio. Veja como as palavras voltam.

É comum vermos vários setores da sociedade tendo destacadas suas lutas a favor da democracia, mas isso não parece se repetir com os indígenas. Por que essa face da História, tão forte e importante, não está sob os holofotes?

A História tem revisto essa questão. Uma figura como a do Raoni sempre foi emblemática para pensar o Brasil ou como o país trata mal seus povos originários. Se pegarmos as pesquisas antropológicas, é reconhecido que os indígenas alimentaram uma resistência contra a ditadura. Acho que o Brasil não chegou a compreender isso ainda, porque significaria apresentar uma realidade que pode até desqualificar outros movimentos. Temos que ver quem é que, por exemplo, filma o Brasil. O Glauber Rocha estava preocupado com o sertanejo, com um olhar para um Nordeste que sempre foi desprezado. Se pegarmos o Zelito Viana, é quem elaborou as primeiras narrativas sobre a identidade brasileira, é quem inseriu os indígenas no cenário como protagonistas. Não é que o cinema nunca tenha dado o destaque aos indígenas, mas o país é muito complexo. O livro Macunaíma, que depois foi transformado em filme, já trazia um pouco essa vontade de ler o Brasil. Temos o Vincent Carelli, diretor do projeto Vídeo nas aldeias, que tem um olhar completamente diferente de cinema e de produção cinematográfica. Temos também o Luiz Bolognesi com uma produção bastante rica. São dele os filmes Ex-pajé, que trata da missão evangelizadora das igrejas, e A última floresta, que ganhou vários prêmios. Marco Bechis foi quem fez um dos filmes mais impactantes que já assisti: Terra vermelha. É uma construção coletiva com os kaiowá, do Mato Grosso do Sul, que conta uma história inocente e, ao mesmo tempo, revela uma potência muito grande. Deixando as polêmicas à parte, podemos citar também a série Cidade invisível, que traz uma leitura possível sobre identidade. Já estão preparando uma segunda temporada, ambientada mais na Amazônia. A série Dom também ganhará uma nova temporada, centrada na região amazônica, e terá uma crítica aos militares. São muitas produções que vêm revelando um novo olhar sobre nossa cultura e nossa história. Acho que o protagonismo de representantes dos povos originários nas artes aprofundou esse olhar. Já existem vários realizadores indígenas que estão produzindo filmes a partir de suas óticas e vivências.

A pedagogia indígena tem uma tradição holística, refletindo sempre sobre o passado e o presente. Como esse olhar tão particular reverbera em sua literatura?

Eu só escrevo sobre o passado e o presente. Falamos que um livro é de ficção, mas ficção como estilo literário, não como desejo de pensar o futuro. O futuro, sim, é ficção. Costumo lembrar sempre que os não indígenas pensam para a frente, enquanto os indígenas pensam para trás. Ao pensarmos para a frente, nós nos distraímos e nos anulamos. Não vivemos o presente, porque estamos em uma postura de criar, de produzir, de enriquecer e nos realizar. Está tudo ali, em um “vir a ser”. De certa maneira, não criamos pertencimento, porque o futuro não pertence a ninguém. A única coisa que nos pertence é o passado, a memória. Os indígenas trazem a necessidade de dar um passo para trás antes de se projetar para a frente. E buscar as respostas nas experiências vividas por outros. É o que chamamos de ancestralidade ou tradição. O tempo indígena não é linear, mas circular. É preciso reverenciar a memória. Esse andar para a frente não é imaginar um tempo que há de vir, mas entender que somente é possível se realizar caso viva plenamente, caso viva o agora. Não é possível ser feliz amanhã. Somente é possível ser feliz hoje. É claro que essa visão de mundo se choca com a dos não indígenas. Eles dizem que somos preguiçosos e atrasados. As pessoas das cidades aprendem que é necessário acumular riquezas. Isso, como proposta de vida, é uma aberração.

Você sempre comenta que seu avô é sua grande inspiração e que um dos ensinamentos dele que o marcaram foi de que, se o agora não fosse bom, não se chamaria presente. Como lidar, então, com um presente tão duro e obscuro?

O presente que nós vivemos não é construído pelas pessoas. É um tempo no qual não conseguimos nos concentrar, porque a sociedade não nos permite. Sempre somos jogados para o futuro, para um tempo que não temos. Se nos concentrássemos no presente, poderíamos encontrar soluções para muitas coisas, porém achamos que essas respostas estão lá na frente. Normalmente dizemos: “O que será de nós?”. E não estamos falando de hoje, mas de amanhã, das novas gerações. E se não existir esse futuro e só tivermos o agora para viver? O Ailton Krenak diz assim: “O futuro será ancestral ou não será”. O ancestral está ligado ao passado, mas, quando o lançamos para a frente, estamos dizendo que temos que pensar na ancestralidade se quisermos ter o futuro como horizonte. E onde estão os velhos em nossa sociedade? Ora, estão desprezados, mas são justamente eles o símbolo de nossa memória. Quero acreditar que um dia as pessoas perceberão o quanto perderam não ouvindo os povos indígenas.

Imagem: ilustração de Mauricio Negro para o livro Wahtirã: a lagoa dos mortos, de Daniel Munduruku e Jaime Diakara