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A literatura, o chamado “universo infantil” e a vida mesmo

Aproveito este espaço para apresentar alguns pontos e dúvidas que têm sido importantes para mim, não só como autor de livros para crianças e jovens há mais de vinte anos, mas também como pessoa tentando compreender a vida e o mundo.

Nossa tradição cultural tem pressuposto a existência de um “universo infantil”, que se configura em oposição a outro, o “universo adulto”, ambos tratados como fatos naturais, nítidos, lógicos e indiscutíveis.

São conhecidas as diferenças entre adultos e crianças: adultos costumam ser capazes de pensar abstratamente; podem ter maior capacidade de concentração e de trabalho; fisicamente são mais fortes do que crianças; em geral conseguem controlar suas emoções e são capazes de exercer sua sexualidade com plenitude.

Supor, porém, que adultos e crianças formem dois universos, dois grupos homogêneos de pessoas, parece ser uma visão bastante equivocada e reduzida, para não dizer ingênua, de qualquer coisa que se possa chamar “realidade”.

Vou contar uma experiência pessoal. Meu pai tinha um sítio em Itaquaquecetuba, perto de São Paulo. Na época, isso faz quarenta anos, a região era rural, com sítios, pequenas granjas, plantações de verduras, algumas olarias e muito mato. Meus irmãos e eu passávamos lá as férias e quase todos os fins de semana. Fiz amizade com a criançada do lugar, filhos de caseiros, camponeses e pequenos sitiantes. Com eles joguei bola, pesquei tilápia e lambari, aprendi a tirar mel de marimbondeiro, comer içá e jogar bola de gude. Um dia, chegando ao sítio, soube que um dos nossos companheiros tinha se suicidado. Eu tinha uns 9 anos. Nunca ouvira falar em suicídio, nem mesmo sabia que uma pessoa podia se matar. Foi um choque. O menino chamava-se Sérgio e era filho de japoneses que viviam da plantação de verduras. Parece que o Sérgio queria estudar, mas seu pai preferia que ele trabalhasse na terra. Diante do conflito, o menino optou por tomar formicida. Ele era como todos nós: brincava, jogava bola, corria para lá e para cá, dava risada e tudo o mais.

Faz sentido imaginar que crianças, mesmo tendo a mesma idade, formem algum tipo de grupo homogêneo?

Se pensarmos em aulas de ginástica, a divisão de crianças em faixas etárias parece ser um procedimento bastante razoável. Se considerarmos as matérias escolares também. Pode ser uma estratégia inteligente reunir crianças da mesma idade para ensiná-las a compreender a língua portuguesa, as regras gramaticais, a matemática, a História e as ciências. Afinal, pessoas da mesma idade podem ser consideradas indivíduos com, mais ou menos, as mesmas características e no mesmo estágio físico e neurológico.

Mas, e levando-se em conta a humana (e óbvia) diferença entre as experiências individuais de cada um?

Sérgio poderia ter tomado outra atitude. Obedecer ao pai, enfrentá-lo, levar na brincadeira, dar um tempo, desobedecer, adoecer, fugir de casa, pedir ajuda.

O que pode se passar dentro da alma de uma pessoa, seja ela criança ou não?

Olhando bem, a ideia de que exista um “universo infantil” pressupõe que algumas capacidades cognitivas, vivências e sentimentos fazem parte deste universo, e outras não.

Quanto às capacidades, não vou discutir neste artigo. Só gostaria de lembrar que certas características cognitivas consideradas “infantis” permanecem, como demonstrou Luria, entre outros estudiosos, em adultos que não tiveram acesso à cultura escrita (cf. ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998).

Quanto às vivências e sentimentos, com certeza não é o que parece (e seria desumano se o fosse!). A vida simplesmente acontece, independentemente de teorias educacionais, fases cognitivas discutíveis, rótulos e genéricas faixas etárias.

Um menino de oito anos que vive, por exemplo, uma situação econômica estável e, por alguma razão, fica pobre, não seria outro se, de alguma forma, pudesse ter permanecido em sua vida anterior, tranquila e estável? Tudo indica que sim.

Em nosso país, há crianças de oito anos que já trabalham para ajudar suas famílias. Há crianças de dez que tomam conta de irmãos menores, cozinham e lavam roupa, enquanto os pais vão trabalhar. Há também meninas de 11 anos que já são mães (portanto, em tese, avós com menos de 30 anos).

Por outro lado, é possível encontrar jovens de mais de 20 anos que nunca, nem de longe, pensaram em trabalhar. Que, apesar de estudarem em escolas caras, são alienados politicamente e não têm noção do que seja cidadania; mas já têm automóvel e adoram brincar de apostar corridas e tirar rachas dentro da cidade. É emblemático o assassinato hediondo e inqualificável do índio Galdino, cometido em 1997 por jovens da elite, alunos do ensinos médio e superior, níveis de instrução não atingidos por numerosíssimos pais de família brasileiros.

Além disso, há filhos de pais separados; há crianças que sofreram abusos emocionais, físicos, sexuais; há traumas; há temperamentos; há sonhos; há fantasias e vivências absolutamente pessoais (o gosto, os afetos, os prazeres, a paixão, a perspectiva do sublime).

Para complicar, não é difícil encontrar, num mesmo grupo de idade, pessoas oriundas de tradições, culturas e concepções de mundo diferentes.

Todos, quero lembrar, ricos ou pobres, com ou sem traumas, alienados ou não, são, ou poderiam ser, leitores e talvez um dia irão sentar-se e ler um livro, meu ou de outro autor.

Como não levar em consideração tais fatores na hora de escrever um texto? Como não perguntar que recursos, além dos prescritos pela ideologia do “universo infantil”, estão, afinal, virtual e potencialmente presentes na infância?

Uma criança, tenho certeza, é algo maior e mais complexo do que uma simples, higiênica e abstrata categoria piagetiana. Não se trata de uma crítica ao pensador ilustre, mas, sim, à forma simplista e utilitária com que, por vezes, teorias como as dele e de outros estudiosos são aplicadas (cf. ZILBERMAN, Regina; MAGALHÃES, Lígia Cademartori. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 1982).

Continuando com o mesmo raciocínio, o que são adultos? Não será uma inacreditável simplificação tratá-los como uma massa homogênea e abstrata?

Creio que vale a pena lembrar alguns pontos comuns entre adultos e crianças: ambos sentem dor física; são, em graus diferentes, dependentes de inúmeros fatores, sociais, afetivos, políticos e outros; podem ter dúvidas com relação ao que seja a “realidade”; estão em busca, conscientemente ou não, de um certo grau de autoconhecimento; são passíveis de sentimentos como ciúme, vaidade, inveja, ódio, amor, tristeza ou alegria; são passíveis de agir egoísticamente; sentem prazer e desprazer; fazem brincadeiras; apreciam o conforto e a segurança; podem ser incompreensíveis ou incoerentes; estão em permanente processo de transformação; sentem medo; obedecem a instintos como o de autodefesa, entre muitos outros; recorrem às linguagens oral, gestual, etc.; tendem a querer ser independentes; são sexuados; podem adoecer; são mortais; costumam temer a morte; são capazes de cometer suicídio; necessitam do contato físico, do sexo afetivo, em graus diferentes talvez, não importa; têm na curiosidade um princípio vital; são seres eminentemente sociais; entre outros exemplos.

Tento dizer que, na minha visão, é impossível e até irresponsável escrever para crianças sem tomar uma posição diante de tudo isso.

Autores que acreditem na existência de um “universo infantil” certamente vão fazer um tipo de trabalho bastante distinto de outros, entre os quais eu me incluo, que partem da ideia de que adultos e crianças são muito mais parecidos do que diferentes e compartilham um mesmo e único universo.

O assunto, reconheço, é amplo e complexo, pois, entre outras coisas, como a própria noção do que seja literatura, envolve ideologia, valores culturais, visões pré-determinadas do que sejam a “realidade”, a existência e o mundo.

Mesmo assim, vou tentar concluir com alguns comentários que, espero, sirvam, ao menos, para levantar uma discussão ou alguma reflexão:

1. O conjunto de informações previstas pelos programas educacionais, açambarcado e dividido entre as diferentes matérias escolares, tais como o idioma nacional e sua regras, a matemática, as ciências, a História, entre outras, em que pese sua fundamental importância, tende a apresentar um modelo reduzido e lógico da realidade, sendo, portanto, a meu ver, insuficiente para realmente formar pessoas.

2. Para além dessas matérias, existe um sem-número de assuntos, também fundamentais, mas que, por serem subjetivos, imensuráveis e não passíveis de lições, acabam relegados a um segundo plano, quando não simplesmente ignorados. Eles dizem respeito, por exemplo, a temas como a busca do autoconhecimento e a da identidade. Esclareço que não estou me referindo a qualquer categoria filosófica ou estética, mas, sim, ao simples fato de que todos nós, o tempo todo, em qualquer lugar, época e cultura, estamos envolvidos, formal ou informalmente, em constantes processos de aprendizado; tendemos a procurar reconhecer e separar o que gostamos do que não gostamos; ou fazer tais e tais planos; ou agir assim e não assado. Por outro ângulo, estamos sempre envelhecendo, o que significa estar mudando permanentemente. Um homem de 80 anos nunca teve 80 anos antes. Por essa razão, vai ter que aprender mais sobre si mesmo e buscar autoconhecimento para lidar com sua nova idade. Tais fatos, banais e cotidianos, implicam o que aqui estou chamando de busca do autoconhecimento e da identidade.

3. Mas há mais assuntos que costumam permanecer afastados da escola: os relativos às emoções e afetos; à nossa relação com a morte; à nossa relação com o outro; à passagem inexorável do tempo; à nossa relação com as perdas; à nossa relação com a ambiguidade; à nossa relação com a carência afetiva; com nossa corporalidade e suas implicações; com os valores sociais e morais vigentes; com a metafísica; com o que seja a efemeridade, a utopia, a loucura, a fantasia e a realidade, entre uma infinidade de outros temas vitais mas ausentes das matérias que formam os currículos oficiais.

4. Como tentei mostrar anteriormente, tais assuntos, apesar de não poderem ser medidos, nem serem passíveis de lições, dizem respeito a qualquer ser humano, independentemente de faixas etárias. Assim como todos nós, bebês e idosos de 90 anos estão, conscientemente ou não, mergulhados num processo ininterrupto de aprendizado. Não seria bom que crianças soubessem disso sobre si mesmas e também sobre os adultos? Note-se que a ideologia do “universo infantil” prevê que, em tese, só crianças estejam em processo de aprendizado, pois adultos, seres maduros e equilibrados, já sabem o que querem e o que são (!).

5. Apenas a título de ilustração, mais como um parêntese, quero lembrar que muito raramente se vê uma escola que, ao menos no ensino médio, dê a seus alunos aulas sobre primeiros-socorros. Pode ser usual, mas nem por isso deixa de ser estranho. Que tipo de pessoa, afinal, se pretende formar?

6. Argumentar que tais assuntos fogem do âmbito escolar seria desvincular vida e escola. Tal ponto de vista, embora inaceitável, talvez ajude a explicar, por exemplo, o assassinato do índio pataxó.

Quero encerrar dizendo que, a meu ver, o papel da literatura dentro da escola é essencial. De todos os livros oferecidos ao leitor, somente na literatura ele vai encontrar, por exemplo, uma personagem paradoxal, Raquel, que numa bolsa amarela guarda sua vontade de crescer, de ser menino e de tornar-se escritora; ou uma menina, Alice, que, viajando por um país imaginário localizado no fundo da terra, tem oportunidade de meditar sobre o que é ser adulto e ser criança, de discutir a lógica das coisas e das palavras, de constatar a dificuldade de se discernir o que é e o que não é a realidade; ou vai entrar em contato com a ambiguidade e riqueza de uma casa muita engraçada que não tinha teto nem tinha nada; ou os istos ou aquilos da qual a vida é recheada; ou ainda os tantos e tantos heróis que, ignorando lições e informações datadas e oficiais (portanto, note-se, atualizáveis periodicamente) decidem partir para conhecer o mundo; enfrentam gigantes, dragões e forças desconhecidas; recebem ajudas inesperadas; contam com a sorte e o acaso; por vezes passam períodos sob o domínio de algum encanto e, no fim, acabam casando com a princesa e até virando reis, ou seja, realizam os sonhos de muitos e muitos de nós: viajar, conhecer a vida e o mundo, enfrentar desafios, encontrar o parceiro amoroso e conseguir uma certa estabilidade econômica.

Infelizmente, tais assuntos costumam andar afastados dos currículos escolares, mas, é preciso reconhecer, têm interessado a seres humanos de todas as idades, em diferentes épocas e lugares. Por essa razão, acredito, precisariam encontrar um espaço mais nítido dentro da escola, não para serem “ensinados”, mas, sim, discutidos e compartilhados por professores e alunos ou por adultos e crianças.

A literatura, através da ficção e da linguagem poética, pode ser um instrumento determinante para esse encontro e para essa troca.