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A linguagem do indizível

A literatura de Marina Colasanti é a da construção mágica de universos por meio de uma poética muito particular. Autora de mais de 50 livros de diversos gêneros literários e tradutora de muitos outros, recebeu prêmios nacionais e internacionais, como o Prêmio Ibero-Americano SM de Literatura Infantil e Juvenil, e foi indicada ao Prêmio Hans Christian Andersen.

Em entrevista ao projeto “A arte de fazer livros”, ela repassa a sua carreira, conversa a respeito do processo criativo de suas obras, debate o papel fundamental das bibliotecas comunitárias na formação de novos leitores e reflete sobre o futuro da literatura.

Quando a senhora chegava aos 80 anos, comentou que contava o tempo com urgência, que era preciso aproveitar ao máximo. Como essa urgência reverbera na sua literatura, que é tão delicada e reflexiva?

A urgência desapareceu com pandemia. Eu estou muito ocupada cuidando de pessoas para mim muito caras. Cuidando de Affonso [Romano de Sant’Anna, seu marido], que está acamado, cuidando da minha filha, que teve câncer. Por isso, essa urgência desapareceu. Por esses dias faleceu um ator querido, o Tarcísio Meira, de 85 anos; e faleceu o Paulo José, de 84 anos; e vou fazer 84 anos em setembro. Ninguém na minha família foi longevo, morreram todos, bem educadamente, cedo. Não quero e nem posso esperar a longevidade. Não quero ser um peso para ninguém. Então, a urgência se impõe quando a gente passa da linha dos 80. É uma superação. Já basta.

Será que seria um peso o prazer da convivência com a senhora e as suas histórias?

Olha, não sei se é um prazer. Eu não conto histórias na vida real, só quando me sento na frente do computador ou fabulo sozinha caminhando, acompanhando aquilo que chamo de “projeto livro”. As histórias não se formam na minha cabeça, no meu inconsciente, da mesma maneira. Uma coisa é a formação dos contos maravilhosos – mais comumente chamados de contos de fadas –, e outra coisa o resto todo.

A sua literatura tem um certo primor pelo detalhe, por aquilo que parece invisível, mas que na verdade só está disponível a quem se dedica a enxergar. Existe, claro, uma economia de palavras. Como a senhora construiu esse estilo tão particular de contar histórias?

Antes disso, desenvolvi os minicontos, ou microcontos, em que não sou tão delicada, sou mais agressiva, crítica e política, porém igualmente econômica. A María Teresa Andruetto (já traduzi quatro livros seus, e ela um meu de poesia; somos como irmãs literárias) tem um livro que se chama Por uma literatura sem adjetivos. Tenho horror a adjetivos e só uso quando são indispensáveis. Os adjetivos têm que ser qualificativos, e quem os usa muito desqualifica a mente do leitor. E, por isso, é que sou tão econômica também com os pronomes. Tudo o que posso jogar fora, jogo. Não faço grandes descrições, a não ser que sejam indispensáveis para a compreensão do leitor. Não sei como entrei nesse universo, não me lembro mais qual foi o primeiro conto, mas de repente me vi na caverna de Ali Babá e não sabia a palavra mágica, não sabia como tinha chegado nessa caverna cheia de tesouros. Imediatamente, decidi que aquela seria a minha caverna e não mais a de Ali Babá. Penei muito para voltar, não tendo a palavra mágica, e quebrei a cara seguidas vezes. Aí, descobri que a palavra mágica não é uma palavra, mas colocar-se à disposição da história. Ser cavalo da história, como se diz nas religiões afro-brasileiras.

A construção das suas histórias se dá também numa perspectiva poética. O olhar da criança está além do que está posto. Qual o papel da literatura infantil e juvenil em estimular esse caráter poético latente à natureza humana?

Esse deveria ser o papel da literatura para crianças e jovens, mas há muito tempo está posta a serviço da moral do momento e da deseducação. Eu considero a educação um todo harmonioso. Você educa a criatura para ser um adulto consciente, observante, respeitoso e cidadão. É um conjunto. A educação não pode eliminar as artes, a música, o teatro, etc. Tem que ser um todo. Harold Bloom diz que a maioria do que se publica hoje em dia para as crianças e jovens seria um cardápio intragável para qualquer adulto de qualquer idade e de qualquer país. E é isso que se faz. Os meus livros de poesia, por exemplo, faço porque sei por experiência própria que, quando plantamos a poesia na infância, a tendência é de que permaneça para sempre. Esses livros, que me dão muito trabalho, são muito pouco adotados nas escolas. Os preferidos são os de crônica. Ora, a crônica é uma literatura híbrida, pois tem um pé no acontecimento, no comentário do dia, do mês ou do ano, e outro pé na literatura – quando tem –, mas é tão mais fácil de trabalhar. É sempre curta, tem sempre o mesmo tamanho, imposto pela publicação, é objetiva. É tão fácil perguntar à criança: “o que essa crônica diz?”, “qual foi a intenção do autor?”, “quem é a personagem principal?”. São perguntas que não se podem fazer com a linguagem poética, porque expressa o inexpressável, o indizível. E o indizível não suporta perguntas. O papel da literatura para crianças – desde o século XVIII, com Fénelon, preceptor do filho de um rei qualquer da França – tem sido educá-las conforme o pensamento vigente, com a moral e a cívica. Quando ouço “Pátria amada, Brasil”, me dá arrepios. Uma pátria que não ama os seus cidadãos não pode ser amada. Agora, estão fazendo livros obedecendo às pautas: inclusão, ecologia, racismo, bullying. São pautas que passam, e a literatura tem que permanecer. Acho que se está dando mais atenção ao tema que à forma. A forma é essencial à literatura, porque é o que conduz além das palavras. É a forma que faz refletir, não o conteúdo.

Quando a senhora fala sobre o indizível e a dificuldade de se trabalhar a poesia em sala de aula, podemos dizer que existe uma falha na formação dos professores para conseguir compreender e devolver a linguagem poética às crianças?

Os professores, a maioria, são mal formados. As faculdades de Pedagogia surgem como cogumelos depois da chuva. E não é dito que essa é uma profissão para quem quer estudar uma vida inteira. Acham que ser professor é querer ensinar. Não é. É mergulhar no estudo, porque um professor tem que estar constantemente estudando, sejam os novos sistemas pedagógicos, analisando currículo escolar ou lendo livros de História e biografias, para se ilustrar mais, ou mesmo literatura. Não é dito que eles têm que ler poesia. Na verdade, poucos são leitores. Aliás, a cultura brasileira raramente inclui a poesia, pois ela trata da miséria, da falta de formação, da falta de dinheiro. Recentemente, li sobre uma iniciativa muito inovadora e muito salutar. As livrarias do Rio de Janeiro se organizaram em um pool em que, quando uma pessoa compra um livro, pode adquirir outro, ou o mesmo, para as bibliotecas comunitárias. E as bibliotecas comunitárias são o que de melhor aconteceu nos últimos anos. Nem todo jovem tem dinheiro para pagar uma condução para ir à biblioteca pública, maior e melhor. Lembro que em Belo Horizonte, na época em que o bairro Cidade Nova não existia, se surpreenderam os bibliotecários vendo, de repente, senhores e senhoras frequentando as bibliotecas e acharam bom que os velhos – prefiro velhos a idosos – estavam lendo. Não, os velhos tinham passagem grátis e iam fazer a pesquisa escolar para os netos, encomendada pelos professores. A biblioteca comunitária põe o livro ao alcance do jovem ou da criança, porém uma biblioteca precisa de intermediário, sobretudo para a infância. É necessário um intermediário sedutor, que olhe cada frequentador e saiba, por instinto ou percepção, qual o livro indicado para aquele frequentador.

Esse fator humano que o algoritmo não nos dá.

O fato humano fez muita falta na pandemia com as escolas fechadas. Precisaremos de alguns anos para recuperar essa ausência. Os pais, a maioria deles, não tiveram educação para educar. Vão na valsa. Brigam com a criança. Não sabem acompanhar os deveres, porque não estudaram convenientemente. São muitas pessoas despreparadas, e para a educação tem que ser muito bem preparadas.

A criança tem uma curiosidade que é natural dela, da vontade de descobrir o mundo. E a senhora fala que a criança é uma caçadora de palavras. Existe algum tema que não possa figurar num livro para crianças?

Todos os temas cabem nos livros. De uma maneira geral, acha-se que a morte e o sofrimento não cabem nos livros infantis, mas toda criança passa por períodos de sofrimento. Toda criança tem muito medo da morte. Na modernidade, varreu-se a morte para debaixo do tapete. As crianças não assistem à morte dos avós, dos pais, dos parentes. Quando o vovô morre, se diz que foi para o céu e vai virar estrelinha. Não, morreu e vai apodrecer. Tem que ser dita a verdade para dinamizar a relação da criança com a morte. A criança tem muitos medos que estão resumidos no monstro escuro embaixo da cama. Ela sabe da sua insuficiência para sobreviver e tem muito medo de ser abandonada, ainda mais nas comunidades brasileiras, onde as pessoas morrem em tiroteio entre bandidos e policiais. É preciso falar da morte de uma maneira poética, suave, por trás das palavras.

Se encaramos a vida como ela é, a literatura pode ser também um agente transformador de percepção.

Essa é a função da literatura, e por isso alguns autores fazem literatura sem se ligar em faixas etárias, que são apenas para organizar o mercado. O livro tem que ser dirigido a muitas idades, tem que ser até para os adultos. Senão não vale para criança nenhuma.

A maioria dos seus livros foi ilustrada pela senhora. E foi nas artes visuais que começou a sua carreira. Até comentou que havia um projeto artístico nessa linguagem. Como foi a virada de página para a literatura?

Eu, sendo muito independente, precisava de um emprego. Sabia que demoraria muito para ganhar dinheiro com a arte, porque fazia gravura em metal, e esse não é exatamente um deleite para os brasileiros. E, querendo a minha independência, procurei com os amigos um emprego, um trabalho. Eu namorava naquela época o Millôr Fernandes, amigo do Yllen Kerr, que trabalhava no Jornal do Brasil, no Caderno B. Havia uma vaga lá. Para me apresentar, estudei datilografia em 15 dias, em um curso acelerado, porque nem datilografia eu sabia. Cheguei ao Caderno B, rapidamente percebeu o editor que eu tinha um texto bom, e fui promovida para redação. Naquele momento, havia os redatores e os repórteres – um jornal era dividido assim. Os redatores só faziam redação, e os repórteres iam buscar a matéria para ser posta em belas letras e na medida pela editoria. Quando o cronista entrou de férias, passei a fazer crônica. Eram crônicas diárias. Já tendo apreciação do público com as crônicas, cheguei em casa – na minha casa vazia –, botei papel na máquina, uma Olivetti 22, e comecei a escrever o primeiro livro. Assim é que foi a passagem de uma coisa para outra.

Nessa simbiose fantástica entre palavra e imagem que é a sua obra, como é o seu processo criativo? Como acontece essa conversa entre o texto e os traços? A senhora já chegou a criar primeiro uma ilustração e depois as palavras?

Não, quem faz isso é o Ziraldo, que pensa desenhando. Faço primeiro o texto, porque não aprendi a fazer projeto gráfico no computador – na minha época de faculdade ainda não tinha computador – e encarrego disso a editora do livro. Passam-se meses e meses e meses, e já estou envolvida com outro livro quando chega o aviso: “pode fazer as ilustrações; aqui está o projeto”. Aí, tenho que voltar sobre os meus próprios passos, reler o livro todo, reler cada conto com atenção, para ilustrar. Parece até que sou outra pessoa. Quando escrevo, estou no meio de um círculo, com a visão circular. Quando ilustro, tenho que escolher os detalhes de que não falei no livro, tenho que escolher os detalhes estéticos, escolher luz e sombra. As coisas só se definem através de luz e sombra. Nunca desenho linhas, porque são uma falsificação. Esse jogo de luz e sombra dá dramaticidade à ilustração.

Quando a senhora traduz, podemos dizer que é uma terceira Marina?

Ah, sim. Estou traduzindo um livro que está me dando uma surra. É um do italiano Cesare Pavese, de quem tinha lido muitos livros e tinha gostado muito da poesia. Os livros que li eram de frases curtas, secas e quase em pó. O Pavese havia traduzido muitos autores americanos e trouxe para a literatura italiana essa linguagem seca. Traduzi o [Alberto] Moravia, e são frases quase intestinais, dão voltas e mais voltas. Cada frase começa aqui e termina lá embaixo. O Pavese trouxe para a literatura italiana essa dimensão menor. Pensei que o diário do Pavese, O ofício de viver, fosse no mesmo estilo, e não é. É uma longa discussão com ele mesmo sobre o fazer poético e também sobre outros poetas. Esses dias, topei com Homero, com Pavese analisando Ilíada e Odisseia. Sabe, é uma linguagem muito densa, muito pessoal e muito difícil de traduzir. Acabei de traduzir também A revolução dos bichos, do Orwell.

A senhora é uma grande ensaísta, e muitos dos seus ensaios, escritos na década de 1970, falam das lutas e da realidade feminina. Como o feminismo está presente na sua produção ficcional?

Sou uma feminista histórica. Nasci feminista, posso dizer. Quando criança, fazia tudo o que meu irmão fazia. Achava que ser menina, e um ano mais jovem, não era impedimento para nada. Quando não conseguia fazer alguma coisa, dizia para mim mesma “eu sou é homem”, estimulando a minha força e a minha coragem. Naquele tempo, achava-se que só os homens tinham força e coragem. Trabalhei durante 20 anos com as questões de gênero e li muito. No começo dos anos 1970, trabalhava na revista Nova, como editora de comportamento, e viajava para o exterior. Havia estantes nas livrarias indicando “mulher”, e eu comprava o que ainda não tinha sido publicado no Brasil. Eram obras sobre a história das mulheres, a história do casamento, a história do amor, livros de feministas analisando a situação feminina. Achava que não importava o que eu pensasse, mas o que pessoas mais sábias dissessem. Colocava o pensamento dos outros à frente do meu. Isso resultou em quatro livros. Tenho outro livro de ensaios, Fragatas para terras distantes, que são as minhas conferências sobre literatura, leitura, poesia para crianças, literatura para crianças. São de outro tipo de ensaio. E tenho material para um próximo livro de ensaios.

Qual é o valor da memória na sua literatura?

A memória é tudo. Nos diz quem nós somos, nos fala do passado, nos lembra das raízes. Nós pertencemos às nossas raízes, e a identidade só se completa quando a gente tem memória, sabe de onde veio. A memória é muito importante, e a literatura é um tapete voador que nos leva a outros tempos e nos fazer conhecer outras culturas. Sem entender o passado é impossível entender o presente, porque o presente começo a se formar lá atrás. Estou lendo uma biografia da Hannah Arendt, que me foi mandada por uma amiga de Belo Horizonte. Ao revisitar o período nazista, penso nas semelhanças com a modernidade no Brasil, a crueldade, a análise do mal.

Vivemos na pele a banalidade do mal porque não temos uma memória da ditadura como o Argentina ou o Chile?

O Brasil vive no futuro. Nos anos 1950, o Brasil era o país do futuro, mas não nos deram data de quando aterrissaria a nave do futuro. O Brasil vive virado para frente. A Cinemateca queimou, o Museu Nacional queimou, o Museu da Língua Portuguesa queimou. O passado está desabando inteiro, e nada se faz para restaurá-lo ou mantê-lo vivo.

 

Imagem: ilustração de Demóstenes Vargas e bordado das irmãs Dumond para o livro A moça tecelã, de Marina Colasanti