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O prazer que há na leitura literária

Quais imagens e palavras costumamos associar à leitura de literatura? Uma busca rápida na internet nos oferece um cardápio sem muitas variações. As imagens de pessoas deitadas em parques, gramados, na praia ou na rede são bastante frequentes, assim como imagens que nos remetem a voos e viagens. E ouvimos por aí, dentro e fora da escola, coladas nos discursos sobre a formação de leitores, as palavras: prazer, gosto, deleite, diversão, viagem. São imagens e expressões que nos fazem pensar na leitura, sobretudo literária, como uma espécie de entretenimento, ideia que tem sido sustentada e reforçada por muitas campanhas e programas de incentivo à leitura.
É certo que experiências prazerosas podem estar associadas à leitura. Se perguntarmos aos leitores assíduos se gostam de ler ou sentem prazer ao ler, dirão que sim, claro. Mas, de que tipo de prazer estamos falando? E, quando pensamos no entretenimento, o que nos vem à mente? Qual é o tempo que costumamos dedicar ao entretenimento?
Vamos por partes.
Em primeiro lugar, vamos pensar sobre a função e o valor da literatura. Para que ela serve? Luiz Percival Leme Britto escreve em seu texto “As razões do direito à literatura”: “Para que serve a literatura? Para nada e para tudo”. Para nada, porque a literatura não tem uma função utilitária ou pragmática para a vida: ela não tem o compromisso de ensinar, de mudar o comportamento das pessoas, de atuar diretamente no real. E para tudo, se pensarmos que a literatura está aí para que possamos nos indagar sobre quem somos, sobre o mundo em que vivemos, sobre a morte, esse grande mistério. A literatura nasce da necessidade do homem de se pensar, de ter que se haver com a morte, que também nos faz questionar ou buscar o sentido da vida. Desse ponto de vista, a literatura não é escape, mas envolvimento do leitor com os mistérios e os perigos da vida.
E o entretenimento? Para que ele serve? O que podemos pensar sobre essa expressão? Quais palavras podemos associar a uma atividade de entretenimento? Distração, descanso, leveza, descomprometimento são algumas delas. O entretenimento está aí para que possamos descansar da vida do trabalho. Ele parece se opor ao cotidiano de labuta, acenando com atividades leves, que nos distraem e nos alienam, justamente porque não nos exigem pensar sobre a vida, sobre nós e a nossa condição.
Curiosamente, as tais imagens e expressões que vimos associadas à leitura literária sugerem uma experiência mais distraída, descomprometida. Muito distante da função da literatura, que busca colocar o leitor diante de seu mundo e de si mesmo. Gustavo Martín Gazo, citado por María Teresa Andruetto em seu texto “Ler, direito de todos”, reflete: “A literatura é o lugar onde se propõem as perguntas: por que nascemos, o que é o amor, a traição. Por que existem a doença e a dor, por que temos de morrer. Todas as histórias que existem foram concebidas para responder as três perguntas essenciais: a pergunta pelo próprio ser, a pergunta pelo ser do outro e a pergunta pelo ser do mundo”.
Ler nem sempre é fácil, e a literatura não trata das facilidades da vida. É justamente por isso que precisamos dela. O encontro com um texto de literatura nos desconcerta, desestabiliza, ficamos com ele quando sua forma e conteúdo nos fazem refletir sobre a nossa condição, quando nos revelam uma experiência humana com toda a sua complexidade.
Associar a leitura literária a uma facilidade, ao simples prazer, deleite ou diversão é um perigo, pois pode esvaziar a própria função da literatura. A ideia do prazer da leitura busca capturar o leitor, como se as campanhas acenassem com a promessa: venha ler porque é gostoso, é prazeroso, é como uma viagem. Apostando nessa promessa, como se a leitura fosse mais uma forma de entretenimento na imensa vitrine de facilidades e imediatismos de nosso mundo atual, é mais provável que percamos o leitor ao confrontá-lo com a experiência de leitura e com o exercício de reflexão sobre a vida que a literatura nos possibilita.
Em 1952, Italo Calvino escreve um texto chamado “Os bons propósitos”. Nele, nos revela o bom leitor como sendo um sujeito cheio de boas intenções com a leitura, ansiando ler, mais do que isso, devorar livros, mas, como muitos de nós alegamos, sem tempo para se entregar à atividade. Tempo? Logo veremos que não. Chegam as férias e o leitor coloca em sua bagagem os livros que desejou e comprou ao longo do ano. Parte feliz. Mas há sempre algo que o impede de ler: das partidas de tênis, ele passa para os jogos de baralho, destes para os passeios de barco, a companhia de uma mulher bonita e suas conversas, as festas ou o sono da tarde. Todo o seu tempo acaba por ser preenchido por aquilo que cumpria distraí-lo ou entretê-lo. E os livros voltam intactos.
Ler exige trabalho e atividade constante do leitor, entrega e atenção às palavras. Prazer? Sim. Mas não porque é divertido. O prazer vem com a descoberta do desconhecido, do encontro com a forma do texto, que nos coloca diante da difícil e perigosa experiência de viver. Evidentemente, há textos que se aproximam mais do entretenimento, como escreve Luiz Percival Leme Britto, “sem compromisso existencial, em que se busca a satisfação e, em certa medida, o esquecimento”. São experiências distintas.
Se isso não ficar claro, ao associar leitura e entretenimento, vamos ter sempre a impressão de que estamos vendendo gato por lebre. E os possíveis leitores abandonarão o produto que pensarão ter vindo com defeito.

Referências:
ANDRUETTO, María Teresa. Ler, direito de todos. In: ______. A leitura, outra revolução. São Paulo: Sesc, 2017. p. 113-133.
BRITTO, Luiz Percival Leme. Ao revés do avesso: leitura e formação. São Paulo: Pulo do Gato, 2015.
______. Literatura, conhecimento e liberdade. In: INSTITUTO C&A; FUNDAÇÃO NACIONAL DO LIVRO INFANTIL E JUVENIL. Nos caminhos da literatura. São Paulo: Peirópolis, 2008. p. 95-102.
CALVINO, Italo. Los buenos propósitos. In: ______. Mundo escrito y mundo no escrito. Madri: Siruela, 2006. p. 13-15.

Ana Carolina Carvalho é psicóloga e mestre em Educação. É formadora de professores no Instituto Avisa Lá e colaboradora do Instituto Emília, ambos de São Paulo. É membro do grupo ALLE – Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da Unicamp. Atua como assessora na área de leitura para as redes públicas e particulares e também para editoras. Publicou o livro A conta-gotas pelas Edições SM (Prêmio Barco a Vapor, 2014).

Imagem: Katie Harnett.