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O novato

A sala de aula era governada pela bagunça. Sobre as carteiras, o material escolar e as mochilas, desordenados, aguardavam o silêncio e os inevitáveis trabalhos que viriam a preencher as horas daquela manhã de sol. Os alunos, ah! estes eram massa confusa de falas, risos, gritos e, de vez em quando, xingamentos e gestos rudes. Nada parecia durar para sempre. Ou melhor, tudo duraria até a chegada do novo professor.
Ricardo, o mais destemido, já conseguira algumas informações sobre ele. Diziam que era severo. Diziam que era simpático. Diziam que era disciplinador. Ninguém da sala acreditou. Naquele território mandavam os alunos: se não queriam aula, a aula não acontecia. Se não queriam silêncio, só a desordem se impunha. Que viesse o novato! Mas que viesse preparado, porque batalhas cruentas o esperavam.
O clima era de uma ruidosa recepção. Marina contou que, ao passar pela sala dos professores, havia entrevisto pela porta aberta o novato. Era de fina estampa: ao acentuar o adjetivo, ria ironicamente. Baixote, meio magro, meio risonho, meio calado, meio, meio. Não aparentava severidade; antes uma atitude de precavida reserva. No grupo de professores não se destacava, não se impunha, não sobressaía.
Gil, ao ouvir o relato, sorriu. O professor seria presa fácil. Poderia contar desde já ou com a aprovação na matéria ou com o pedido de demissão do dito-cujo. Antônio, este nem falou, nem sorriu: aguardava.
A sirene da escola anunciou o tempo dos trabalhos: sua estridência deu início às guerras intestinas dos saberes, das vontades, das ações e dos estertores de algumas ignorâncias. Os corredores entre as salas de aula ecoavam saltos e passos, rumos e proximidades. Aos poucos, portas se fechavam, e uma paz passageira parecia instalar-se.
Entre as paredes das salas de aula, narrativas começavam. A escola era uma biblioteca viva e em processo. Faltei porque, estou gripada porque, não posso fazer a prova porque, Aníbal transpôs os Pirineus porque, o ouro funde a 1.063 graus porque, o universo nasceu de uma explosão porque, a Baía da Guanabara está poluída porque.
O professor novato trazia outras narrativas. Não sua biografia, não a receita para domar a animosidade dos alunos, não as incertezas da profissão, não o carisma dos grandes educadores. Somente o leitor, constante, amoroso, rebelde, conspirador.
Ocupando o ponto central da curiosidade, do espaço e dos olhares, apresentou-se. Meu nome é Humberto, com “h”. Vocês podem pensar: ah, a letra inútil! Afirmo, no entanto: é a mesma que começa a palavra “humanidade”. E também a palavra “histórias”. E resume o que somos e fazemos. Somos todos narrativas.
Gil cantarolou baixinho, a gente somos inúteu; Marina achou que o professor ficou mais velho por se chamar Humberto; Ricardo acrescentou à lista: é um professor dono do mundo; Clara teve certeza de que o professor era um cara solteiro ou descasado, um solitário. A turma toda experimentou a sensação de que Humberto era um enrolão. Histórias? Humanidade? Isso cheirava de longe a sermão e boas intenções. Antônio apenas esperava.
Começaram os cochichos, que logo se tornaram uma algaravia, um charabiá. Deco se deu o desplante de ir até a carteira de Diego, cinco fileiras atrás, para pedir emprestado um fone de ouvidos para escutar a entrevista de Marcelo Camelo no celular. Fala vai, fala vem, e o novato, impassível, a remexer em sua sacola, em busca de um livro que só ele conhecia.
De repente, uma cantilena em volume quase inaudível começou na frente da sala. Dizia mais ou menos o seguinte:

Minha gente, tô chegando
sem armas nem tristeza
pra começar contando
uma história de belezas.

Se você não quiser ouvir
a história vai se perder,
se você quiser discutir
espere ela acontecer.

A história não vai existir
sem você,
esta história tão antiga
fala de você,
esta história será inútil
sem você.

Cantou baixinho, a bagunça continuou. Recantou baixinho, a bagunça resistiu. Cantou baixinho, a bagunça amainou. Repetiu, e o silêncio se fez.
E o professor novato começou a contar a história de Sherazade.

Imagem: Ufuk Kobaş Smink.