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Meu continente na ilha de Robinson: imagens fundadoras no texto de Daniel Defoe

Para Luiz Percival Leme Britto

[…] estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens.
Italo Calvino1

I. O naufrágio
Foi como deve ser. Apertado junto ao peito, lido, relido, guardado, perdido. De pura inércia, meu pai pedindo que fosse ver os livros antes que ele os jogasse fora, e não fui. Hoje, amanhã, depois, aprendi com ele a adiar, deixar para depois o principal, muitas vezes. Era difícil ir à casa deles, minha mãe uma figura de batalha, eu medo e contenção. Mas foi a inércia que ganhou essa peleja, minha mãe não teve culpa alguma.
Depois de tantos apelos, meu pai jogou fora o Robinson Crusoe – ou Crusoé, na perspectiva vernácula – de minha infância, lido aos nove ou dez anos, companheiro de vida. O arrependimento veio, é claro, como sempre, após o ato consumado. Assim como aconteceu com o herói, ter embarcado no navio quando os planos eram outros, e ele se viu enfrentando a tempestade, acontece também conosco, e a tempestade pode vir de leve, os sinais insinuando-se na paisagem, aumentando de tom, impondo-se, violentos. E então, mesmo bem preparados, já não responsáveis por si, os marinheiros. O duelo entre as forças de um lado e de outro, natureza e humanidade, é desigual. Sobreviver ao naufrágio depende apenas de sorte. Clamamos por Deus, é claro. Se nos salvamos, atribuímos à intervenção divina. Mas não acusamos Deus caso venhamos a perecer. Talvez não dê tempo, talvez não admitamos essa possibilidade. De toda forma, os que morrem levam consigo os segredos dos últimos momentos de vida.
Pereceram todos os companheiros de Robinson Crusoe, apenas ele resistiu ao naufrágio. O livro em que li as aventuras dele naufragou também como objeto, num mar de papéis usados. Atingida pela clareza de que não teria nunca mais aquele objeto entre as mãos, naufraguei também com Robinson Crusoe.

II. Um naufrágio
A tempestade abriu um hiato nas férias de janeiro na cidade de praia. Já não chovia forte, e da varanda da casa vimos as pessoas passarem apressadas, no claro indício de que algo acontecia. Um barco afundava. Seguimos o grupo, cobra desenroscando curiosidade. Vento forte, águas revoltas, o barco ao longe, sobe, desce, aparece, desaparece. Uma desordem da vida, o mundo no rastro de um barco e seus tripulantes. Cada qual escolheu o próprio ponto de observação; ficamos no alto de uma pedra confortável, larga, sem risco de ser lambida pelo mar. O pequeno barco de pescador equilibrava-se do lado de cá da morte, insistia em atravessar o quebra-mar, entrar no consolo da enseada. Luta inglória, desigual, o vento como gato fazendo das ondas um novelo de lã entre as patas; o mar, um tapete enfurecido esquivando-se às tentativas do aspirador de limpá-lo da poeira das vagas. Outro barco saiu para ajudar; com pouco, arrebentou-se nas pedras. Gritos sumidos na boca do vento, mãos cobrindo o rosto, ver fica para sempre, como tatuagem. Expressões sonoras de alívio, não morreram, não morreram os que iam a salvar, largaram o barco a tempo e, ainda perto da praia, nadaram. Os outros, agora mais sós, perseguidos pela tempestade e pelo mar a brincar de gato e rato com eles. Só podíamos olhar, e olhávamos. Por que olhávamos? Víamos pouco, ventos e ondas, ondas, ventos, velas e um casco onde se adivinhavam os homens? Os homens, minúsculos, as mãos obstinadas, a gente podia adivinhar, seguravam a própria vida nas cordas esticadas, os corpos batidos pela violência que o mundo mandava de graça para acabar com eles. E barco e velas nas águas, atentos e infiéis. Voltou a chover, os guarda-chuvas se abriram. Outro barco se preparou e se lançou contra aquele corpo de fúria. As águas – digo águas? ou digo pedra, muralha, boca, sugadouro? A grande massa contra a qual lutávamos todos, os homens nos barcos, nós em terra, não desistia de seu intento, abocanhar a carne em seus domínios. Sobe e desce, aparece, desaparece, aparece, desaparece. Desaparece. Teríamos o naufrágio para narrar.
Mas os homens, eles, apareceram perto do barco-auxílio. A que distância estávamos daquela cena? Mil, dois mil metros? O suficiente para ver uns puxando os outros, trazendo-os para o lado de cá, virando o rumo, dando as costas à força da tormenta, entrando em águas seguras, chegando à praia.
Na praia, desconhecidos se abraçavam, chorava-se em ombro alheio, a vida se fundava, nova, como pedra conquistada no xadrez com a comadre que mora no lado de lá. Voltando para a casa, eu acreditava ter assistido ao naufrágio, e estava dentro dele todo o tempo. Estávamos todos.

III. Algumas imagens
Não recuperei o livro que contava as aventuras de Robinson Crusoe, edição da Melhoramentos, com ilustrações a bico de pena e dedicatória da professora Maria Cosendey. Para a releitura neste trabalho, tomei dois outros volumes, um exemplar de coleção para jovens e o original em inglês, por verificar que o primeiro, anunciado como tradução, era na verdade uma adaptação e suprimia uma das passagens vitais do livro de Defoe. Experimentei o mesmo que a menina Ilda no conto Os anjos, da escritora portuguesa Teolinda Gersão:

Folheei o almanaque à procura, para trás e para a frente, várias vezes. Até dar conta de que as páginas estavam arrancadas.
Chorei de raiva, atirei o almanaque à parede como se o atirasse à cara do ladrão – era o MEU almanaque, ele o tinha roubado o que não lhe pertencia. Aos ladrões cabia o fogo do inferno. Fosse padre ou não. […]
Chorei outra vez de raiva no meu quarto, com o almanaque na mão. Pouco me importava agora quem era Maomé, mas a sua história tinha-me pertencido. Continuava a pertencer-me, apesar de o padre a ter roubado. Porque eu ainda a sabia, verifiquei procurando na memória os pormenores:
A revelação era uma coisa que caía sobre ele, dizia Maomé. Uma coisa que o tocava, como uma palavra ouvida de repente. E depois nada ficava igual. Uma palavra que era como um relâmpago e rasgava uma janela no mundo.
2

Não importava que as páginas lidas tivessem ido para o lixo, Robinson Crusoe estava dentro de mim. É também isso, a leitura, essa apropriação, a tatuagem de que fala Ana Maria Machado em Bisa Bia, Bisa Bel. Certas leituras literárias incorporam-se à memória, misturam-se à biografia de quem lê, e essa constatação permite dizer que o processo de leitura implica passagem do material ao imaterial. O volume na estante torna-se uma experiência, um saber impregnado no cérebro e depositado nos neurônios. Robinson Crusoe foi minha leitura de infância, este romance que, narrando as aventuras vividas em uma ilha, fez de mim um continente.
Robinson Crusoe é considerado um clássico da literatura ocidental, e Italo Calvino, o teórico que vai nos acompanhar nas reflexões que mesclam a leitura recente com aquela dos nove anos, afirma que deve ser lido por ser “um livro de sólida ossatura moral”, em que “o modo direto e natural com que um costume e uma ideia de vida, uma relação do homem com as coisas e as possibilidades ao alcance de sua mão se exprimem em imagens”.3
Inspirado nas aventuras de um marinheiro escocês, Alexander Selkirk, encontrado pelo capitão Woodes Rogers na ilha de Juan Fernández após quatro anos de isolamento, o livro é concebido como forma de o autor ganhar dinheiro em um tempo em que narrativas de piratas e viagens por regiões pouco conhecidas eram chamariz para um público sem exigências de estilo. O escritor Daniel Defoe era um homem que quebrava convenções, envolvia-se em polêmicas, conhecendo mais de uma vez as penalidades legais. Seu herói conheceu a escravidão, a fúria do mar, a enorme solidão e outras encrencas do mesmo porte, por abrigar em seu caráter traços presentes na vida de seu criador. Crusoe é um ser movido a impulsos e desejo de uma existência sem previsão de monotonia, que vai levá-lo a viver por “vinte e oito anos, dois meses e dezenove dias”4 longe da civilização. O longo título original serve de resumo da obra:

A vida e as estranhas e surpreendentes aventuras de Robinson Crusoe de York, marinheiro, que viveu vinte e oito anos completamente sozinho numa ilha deserta nas costas da América, próximo à foz do grande rio Orinoco, tendo sido lançado à costa por um naufrágio, no qual todos pereceram menos ele, com um relatório sobre o modo pelo qual foi enfim também estranhamente libertado pelos piratas; escrito por ele mesmo.5

Lia-se no frontispício da primeira edição do Robinson Crusoe, publicada em Londres, em 1719, por um editor popular: W. Taylor. Não aparecia o nome do autor, pois se devia considerá-lo um verdadeiro livro de memórias escritas pelo náufrago.
Devo ter lido o livro na copa de nossa casa, na verdade um quarto adaptado à função. Talvez no quarto de empregada, no pavimento inferior, de porta para o quintal da evasão. Recupero a casa, hoje bem transformada, recupero as sensações de leitura, as imagens e o espanto que ficaram. O isolamento não me incomodava, solitária eu mesma, afastada do bulício comum pela leitura. Mas fazer um mundo, construir tudo o que é necessário para viver com as próprias mãos, da casa às panelas, lavrar o campo, levantar a fortaleza, isso me arrebatava, isso terá fundado em mim – ou reforçado – a resistência aos naufrágios:

Minuciosas até o exagero são as descrições das operações manuais de Robinson: como ele escava a casa na rocha, cerca-a com uma paliçada, constrói um barco que depois não consegue transportar até o mar, aprende a modelar e a cozer vasos e tijolos. […] Defoe chegou até nós como o poeta da paciente luta do homem com a matéria, da humildade e grandeza do fazer, da alegria de ver nascer as coisas de nossas mãos.6

Robinson apresentou-se para mim como um demiurgo das tarefas cotidianas, artífice da passagem da natureza à cultura. Exerceu sobre mim o fascínio do homo faber, eu inábil com as mãos para tarefas que não fossem o escrever ou as atividades domésticas básicas. Em sua “paciente luta do homem com a matéria”, Robinson modelou a realidade à sua volta, autêntico protótipo do colonizador europeu na América. Nunca esperaria, como eu, que uma fada viesse passar a roupa para aliviar a carga de uma doméstica entediada e comprovar à menina de sete anos os poderes do maravilhoso. Como observa Calvino, uma das razões para que o livro seja relido é a “renúncia, em poucas frases, nos momentos cruciais, a todo excesso de autocompaixão ou de júbilo para passar às questões práticas”,7 na melhor perspectiva estoica. A ética da resistência, do trabalho, do capital sustenta a solidão. O tempo é tomado pelo trabalho, pela exploração da ilha, pela leitura – trouxera do barco “três Bíblias que recebera da Inglaterra e levara comigo, ao partir do Brasil, três livros portugueses e dois devocionários”,8 alguma escrita e o exame da própria situação.

IV. As imagens
A imagem é “representação, reprodução ou imitação da forma de uma pessoa ou de um objeto”.9 O ser humano vidente tem o cérebro povoado de imagens de qualidades variadas. Os olhos percebem, o cérebro registra e armazena, deixando disponível para circulação uma quantidade enorme dessas representações, vitais no processo de pensar, na medida em que as imagens estabelecem referências, que estruturam cadeias conceituais. A imagem do rio Tapajós pode acionar as ideias de sistema hídrico, nutrição, harmonia, eletricidade, lucro, exploração, recursos, vigor, veemência, como vejo no anúncio de uma caravana de resistência aos projetos hidrelétricos na Amazônia.10 Para mim, evoca os igarapés, a experiência mais arrebatadora que já vivi em termos de águas. Evoca também a luta, sempre necessária, em todos os tempos, para escapar à apropriação indevida, à corrupção, à mentira.
Para além do reconhecimento imediato, uma imagem é um lugar onde o eu se instala para se reconhecer, sonhar, ser, intervir. Muito longe de ser uma definição desvinculada do real, aí se patenteia a condição do humano como ser simbólico, cuja relação com o real mede a intermediação daquilo “que, por convenção ou por princípio de analogia formal ou de outra natureza, substitui ou sugere algo”.11 Para assimilação pelo humano, o real necessita do símbolo, o símbolo se firma na imagem. A literatura gera imagens para o leitor. Representação artística do real, as descrições presentes nos textos constituem-se em imagens que permitem ao leitor acompanhar a sequência da narrativa. A visibilidade, enquanto característica fundamental da literatura, é um dos princípios a ser preservado neste milênio, segundo as reflexões de Italo Calvino, para quem há “dois tipos de processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal”.12 O primeiro deles está presente na leitura, capaz de propiciar um autêntico cinema mental, lembrando ainda que o cinema ele mesmo passa antes pelo escrito, por um roteiro, que impõe seleção de imagens: “uma câmera na mão, uma ideia na cabeça”, dizia Glauber Rocha, em frase por ele atribuída ao também cineasta Paulo César Saraceni.13
Em seu percurso conceitual, Calvino avalia a importância do processo de imaginação visiva e exemplifica com santo Inácio de Loyola, que, em seus Exercícios espirituais, aconselha o fiel a ancorar o pensamento em imagens visuais. Ver com os olhos da imaginação é, para ele, via de acesso ao conhecimento dos significados profundos.
Mas de onde provém a imaginação, essa faculdade de fechar os olhos, deixar correr o cinema mental ativo em cada um de nós? Calvino considera que é em um ensaio de Starobinski, “O império do imaginário”, que o tema é mais bem tratado. A imaginação como comunicação com a alma do mundo, fundamentada na concepção da magia renascentista, proveniente de matriz neoplatônica, retomada pelo Romantismo e Surrealismo, alimenta a teoria dos arquétipos e inconsciente coletivo de Jung. Tal percepção é posta em contraste com a concepção de comunicação como instrumento de saber, em que a capacidade imaginativa, ainda que não siga os caminhos do pensamento científico, pode coexistir com ele, sendo necessária e benéfica à sua formulação.
Na observação do segundo processo imaginativo, o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal, Calvino decide caminhar por sua obra, examinar o processo de escrita de alguns de seus contos, em que partiu de uma imagem carregada de significado, por vezes ainda obscuro para expressão, e que se agregou a outras imagens, desenvolvendo suas potencialidades implícitas, “o conto que trazem dentro de si”.14
Podemos fazer uma parada para capturar esse ponto capital do processo de criação, a transmissão dada em palavras de uma imagem original do autor. As palavras, impregnando a percepção e consciência do leitor, facilitam recriar imagens semelhantes ou não, gerar outras inteiramente originais, evocando o repertório individual, cruzando referências.
Uma vez presente a imagem, o passo seguinte para Calvino é submeter a imagem à escrita ou também, conforme chama, à tradução em palavras, que se impõe como guia à imaginação visual. A linguagem confere o fluxo determinante, decide as imagens a serem incorporadas à narrativa. Em processo que procura unificar a “geração espontânea das imagens e a intencionalidade do pensamento discursivo”,15 Calvino reconhece que, acatando as duas posições estabelecidas por Starobinski, isto é, a imaginação concebida como instrumento do saber ou como comunicação com a alma do mundo, adota por fim a posição que concebe a imaginação como repertório do potencial, circunscrito à noção de Giordano Bruno de spiritus phantasticus, de “mundo ou receptáculo, jamais saturado, de formas e de imagens”.16
Debruçados, então, às bordas do infinito? É isso mesmo? Mas não é onde sempre estamos no trabalho com a arte ou com a educação? Que previsibilidade, que contorno prévio garante a obra ou o discente que encontraremos? Nossa face no espelho, quem garante que formas tomará a cada manhã?
Leitores, leitoras de literatura devemos estar abertos às propostas de Calvino, em que toda forma de conhecimento deve atingir esse golfo de multiplicidade potencial:

A mente do poeta, bem como o espírito do cientista em certos momentos decisivos, funcionam segundo um processo de associação de imagens, que é o sistema mais rápido de coordenar e escolher entre as formas infinitas do possível e do impossível. A fantasia é uma espécie de máquina eletrônica que leva em conta todas as combinações possíveis e escolhe as que obedecem a um fim, ou que simplesmente são as mais interessantes, agradáveis ou divertidas.17

O escritor termina seu artigo com uma advertência, uma sugestão. A advertência é a de que resta pouco espaço para a imaginação individual na civilização da imagem. Somos sufocados por imagens estereotipadas, determinantes nos padrões que estabelecem. Ao atender a essas imposições, corremos o risco de perder uma faculdade humana fundamental, a de pensar por imagens. Se acompanhamos bem o raciocínio aqui desenvolvido, temos clara ideia do que está em jogo, do que perderemos. A recomendação de Calvino, de alimentar-se uma pedagogia da imaginação, é por ele considerada difícil e válida apenas de forma individual.

V. As imagens, desde e até
Robinson Crusoe me trouxe imagens presentes que me alimentaram a vida. Os vários naufrágios descritos não me impressionaram muito. Mas as imagens do fazer de Robinson, a transformação do inóspito no familiar, a descoberta de pegadas humanas na ilha, o surgimento de Sexta-feira, os versículos da Bíblia a sustentá-lo nos momentos extremos de solidão e desespero foram essas as imagens que alcançaram uma impressão duradoura. O diálogo com Calvino me permite a constatação de que elas passaram de imagens físicas, bem ancoradas nas areias fundas da mente, a imagens mentais, já não necessitadas de âncoras, por transitarem leves, integradas à minha consciência, sendo parte de minha fantasia.
Não desenvolvi em mim a muliere faber, mas operacionalizei meu cotidiano a partir das ferramentas que me eram mais necessárias, construí a fé em mim, a certeza da sucessão dos dias, da sobrevivência às intempéries.
“Invoca-me no dia da tua aflição, Eu te aliviarei e tu me glorificarás.” Os versículos da Bíblia, repetidos várias vezes na edição da Melhoramentos, e sequestrados da adaptação de Vera Veloso da editora Abril, estão comigo, mesmo agora que me tomo por agnóstica. Herege, eu escolho, e escolho o caminho da literatura, aberto pela solidão e desamparo humano, que criam a alta fantasia.
Vou ao início do capítulo da visibilidade para organizar bem esta reflexão final: “Há um verso de Dante no ’Purgatório’ (XVII, 25) que diz: ‘Poi piovve dentro a l’alta fantasia’ [Chove dentro da alta fantasia]. Minha conferência de hoje partirá desta constatação: a fantasia, o sonho, a imaginação é um lugar dentro do qual chove”.18 Para Dante, homem do seu tempo, “essas imagens chovem do céu, ou seja, […] é Deus quem as envia”.19
A literatura, como diz Umberto Eco, ensina a morrer por ensinar a viver antes de morrer,20 e há coisas que só a literatura com seus meios específicos pode nos dar.21 O poeta Drummond descobre, adulto, as verdades da infância: a história dele é mais bonita que a de Robinson Crusoe.22 Partilha esse saber experimentado na vida com seu leitor: cada vida pessoal é sempre mais bela que a de qualquer personagem e, como a do personagem escolhido por Drummond para a comparação, a vida do poeta é também feita de luta, labor, ética. Crusoe permanece imortal na literatura, convidando a leitora ao naufrágio para encorajar a visita à cabana dele, à fortaleza, à ilha, ao continente capaz de ser forjado por cada um, em meio ao abandono e à solidão.

Notas
1 CALVINO, 1990, p. 107-108.
2 GERSÃO, 2000, p. 40.
3 CALVINO, 2007, p. 105.
4 DEFOE, 1972, p. 145.
5 CALVINO, 2007, p. 104.
6 Ibidem, p. 107.
7 Ibidem.
8 DEFOE, 1972, p. 39.
9 HOUAISS, 2009, não p.
10 JOTA PARENTE, 2014, não p.
11 HOUAISS, 2009, não p.
12 CALVINO, 1990, p. 99.
13 CPDOC, 2014, não p.
14 CALVINO, 1990, p. 104.
15 Ibidem, p. 106.
16 Ibidem, p. 107.
17 Ibidem.
18 Ibidem, p. 97.
19 Ibidem.
20 ECO, 2003, p. 21.
21 CALVINO, 1990, p. 11.
22 ANDRADE, 1973, p. 3-4.

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond. Reunião: 10 livros de poesia. Introdução de: Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.
______. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução de: Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CPDOC. Paulo César Saraceni. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/biografias/paulo_cesar_saraceni>. Acesso em: 3 nov. 2014.
DEFOE, Daniel. Robinson Crusoe. London: Penguin Books, 1985.
______. Robinson Crusoé. Tradução [e adaptação] de: Vera Veloso. Ilustração de: Walter Hüne. São Paulo: Abril, 1972. (Clássicos da Literatura Juvenil).
ECO, Umberto. Sobre a literatura. 2. ed. Tradução de: Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2003.
HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
JOTA PARENTE. Itaituba, Pará, 2014. Disponível em: <http://jotaparente.blogspot.com.br>. Acesso em: 3 nov. 2014.

Imagem: Ajubel.