Quando Manuel Bandeira leu o primeiro livro de poemas de Mário de Andrade (publicado há exatamente um século), não teve dúvidas: era um livro ruim. Mas esse ruim não era – digamos – um ruim consabido, evidente, definitivo. Era diferente. Era um “ruim estranho”. Foi aí que Bandeira farejou qualquer coisa a mais que não deixava o tal mau livro passar em branco.
Eu era menina quando abri o livrão da poesia completa de Mário, ainda sem saber que a capa de arlequim estava lá para lembrar a primeira edição de Pauliceia desvairada. Livrão da biblioteca da mãe cheio de marcações a lápis pelas páginas de “A meditação sobre o Tietê”. Eu punha atenção aos versos destacados pela mãe: “É a cidade… É a emaranhada forma / Humana corrupta da vida que muge e se aplaude”, “Me sinto o pai Tietê! ôh força dos meus sovacos! / Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda!”.
Para minha magra adolescência, aquilo, aquele portento de poema, era de uma complexidade de vida que só mesmo vivendo para entender. E o que eu tinha vivido até ali, de pouco aporte para aquelas águas barrentas de desilusões, por outro lado já bastava para encher de sentido um poema como “Improviso do rapaz morto”. Meu rapaz morto tinha rosto de moça, corpo de moça, e era tal qual o rapaz morto de Mário: parecia “um Sol quebrado”. Memorizei esse improviso. Depois, o poema “Mãe”. Depois, “Luisito”. O coração ajudava a puxar uma carreira de versos que era sempre exclamativa, no pesar e na alegria.
Levei Mário comigo para fora de casa. Subi com ele no palco do teatro do colégio, nos ensaios de uma peça que comemorava os 730 anos de nascimento de Dante Alighieri. Dante e Mário, podia essa mistura? Para nós que ensaiávamos uma Divina Comédia do tamanho da nossa imaginação de meninos e meninas, podia. Nossa peça de colégio, revendo agora com uma ponta de ternura maternal pelas coisas passadas, tinha lá sua extravagância criativa para garotos de dezesseis, dezessete anos.
Dante entrava com sua túnica vermelha e sua coroa de louros no além-mundo, guiado por um pequeno Virgílio loiro, de voz rouca, vestido com o uniforme do patrono do colégio. Dante entrava no além-mundo da poesia brasileira pelo “Nel mezzo del camin” de Olavo Bilac. Nos círculos do inferno, estavam os pinchos da serpente no corpo da mulher da “Dança do ventre” de Cruz e Sousa, o “Homo infimus” de Augusto dos Anjos. No purgatório, “A flor e a náusea” de Drummond e o “Luisito” de Mário de Andrade.
Era perfeitamente triste e bonito o Luisito de Mário em seu avião de combate sobrevoando a orla azul dos esquecidos. Meu Luisito “entre estrelas dúbias” num baixo céu sem paraíso. Meu Luisito “armado de morte, cercado de morte, amante da morte”, meu Luisito “com sabor de promessa falhada”, que pena! Cada um tem seus casos estouvados de amor menino, casos de amor de vão de escada, casos de amor de horas roubadas, casos de amor de gosto e tato sem tutoriais que abrandem o susto da primeira vez. Meu caso de amor com Mário tem a ver com uma estranha Divina Comédia.
Os pecados contra a honra do vernáculo de um apaixonado pelo corpo quente da língua, isso eu também amei em Mário, sua intimidade de pés descalços, ali, tão perto da gente, dançando com as palavras, a começar por dar à dança um torneado “s”. Os excessos, as imperfeições, uma amazônia de sentimentos dentro de um coração urbano de nascença, uma alegria inconformada, que não quer morrer e não morre, turrona, não morre. Era esse o Mário de Andrade dos meus dezesseis anos, meu poeta do purgatório, o que me pedia vida e tempo para viver. Um dia eu reabriria o livrão da mãe, meio desmantelado, já sem capa. Estaria pronta para “A meditação sobre o Tietê”?
Imagem: Lasar Segall.