A produção artística de Aline Abreu é movida pelos gestos e pelas sensações que envolvem as páginas dos livros. As texturas, as cores e os detalhes são elementos fundamentais para compor as suas histórias. Com uma carreira que se desdobra a partir das artes visuais, a artista – chamá-la de “autora” ou “ilustradora” poderia criar um certo reducionismo – construiu um modo muito próprio de fazer livros, explorando as espacialidades da página e as muitas interpretações da palavra.
Seus livros estão para além de uma leitura literária em um sentido mais estrito e se revelam como um olhar para o mundo e para o outro. São experiências de empatia recheadas de desafios.
Neste episódio do projeto “A arte de fazer livros”, Aline Abreu conversa sobre o seu processo de criação, a herança artística das mulheres da sua família, a importância da natureza para a sensibilização das pessoas e muitos outros assuntos que atravessam as suas histórias.
Pensando sobre a sua produção literária, percebi que tem por trás um conceito para além da literatura, que desdobra a ideia de texto e a de imagem. O artista mexicano Ulises Carrión diz que o escritor não escreve textos, que o escritor faz livros. Como essa observação do Carrión se reflete nas suas obras?
Essa ideia do fazedor de livros tem a ver com quem está pensando essa produção do ponto de vista não da teoria necessariamente, mas do funcionamento da coisa. Não se trata somente de contar uma história, mas buscar formas de mostrar para quem vai ler como esse tipo de história funciona, quais são os mecanismos em ação para compor esse tipo de texto quando você faz um livro ilustrado e conta com o suporte, não como mero suporte, mas como parte da linguagem e das relações entre palavra, imagem e objeto, compondo essa narrativa que vai ser lida. Quem consegue pensar como fazedor de livros é quem está preocupado com esse todo. Não é nada assim muito novo neste momento, mas, quando o Carrión falava sobre isso lá nos anos 1970, sim, pensando principalmente no campo da literatura. Acho que é por esse motivo que esse trabalho dele chamou tanto a atenção de quem é das artes visuais – porque havia uma produção intensa de livros de artista naquele momento. Faz todo sentido trazer essas reflexões dele para a nossa área, justamente porque estamos bebendo dessa fonte – do livro de artista e do livro-objeto – para pensar o livro ilustrado contemporâneo.
Numa entrevista você disse que não se levava muito a sério como artista, mas levava a arte a sério. Como resolveu essa aparente contradição? Ser professora contribuiu para que se assumisse como artista?
O ponto de virada para mim foi a maturidade. Precisei ter uma boa estrada para conseguir me levar a sério. Era muito insegura. Tenho 43 anos e vejo, hoje em dia, o pessoal que está com 30 anos, um pouquinho menos ou um pouquinho mais, já muito cedo entendendo o que quer fazer. Quando comecei a trabalhar com livros, me encantei com ilustração por ser uma forma de estar perto da literatura – sempre escrevi, sempre quis escrever. Acabei indo para as artes visuais porque achei que na literatura iria me perder, justamente por aquela insegurança: “Puxa, como assim vou ser escritora? Por onde começo?”. Não conhecia nenhuma escritora ou escritor, não tinha ninguém próximo a mim que se dedicasse à escrita de literatura. Uma professora me chamou na casa dela e falou: “Você devia fazer Letras, precisa escrever. Você já escreve e precisa continuar”. Mas fiquei fugindo da escrita, com receio de encarar e falhar, como muita gente que acaba deixando para lá ou dando muitas voltas antes de realmente mergulhar nesse universo. Então, fiz muitas coisas nas margens até, de fato, me assumir como uma artista do livro, até admitir que é o livro que me interessa, pensando mais o texto literário ou o livro que é híbrido. Tanto que, aos poucos, fui deixando de trabalhar como ilustradora. Fui abrindo outras janelas, fiz mestrado, comecei a dar aulas para ter uma atividade paralela, mas ultimamente tenho tentado focar bastante a produção literária, dentro do possível. Quando estava fazendo outras coisas, produzia arte, pesquisa, livros, pensando o tempo inteiro, tendo ideias e precisando concretizá-las. Foi aos 40 anos que falei: “Putz, se agora eu não me autorizar a dizer para mim mesma, e para os outros, que isso é o que sou…”. No meu caso, não me assumir como artista teve muito a ver com questões emocionais, com falta de confiança em mim mesma. Mesmo que as pessoas me incentivassem, não acreditava, achava que estavam puxando o saco, que queriam me agradar para eu ficar bem. Tive muita dificuldade com isso. Vejo entrevistas de artistas e de escritores dizendo: “Você até pode produzir – ter uma produção que olhe e fale que o representa – se conseguir se tirar do meio do caminho”. Para mim, essa ideia faz todo o sentido, porque quem mais me atrapalhou foi eu mesma. Uma das coisas boas de ter ficado mais velha, e estar ficando mais velha, é assumir o que sou e dar o meu melhor. Acho que tem uma questão bastante pessoal, porque, sendo filha de pais muito amorosos de classe média, fui criada para casar. Demorei anos para me dar conta disso. Estudei teatro, toquei violino, fiz balé, tudo que me interessou, transitei por várias áreas, mas a escrita sempre foi o principal. Desde criança, tive um interesse pela escrita. A minha avó era poeta – uma poeta não publicada. O meu pai, depois, fez uma publicação póstuma de todos os poemas dela. Não conheci essa avó. Então, tinha uma fantasia, um interesse muito forte pela arte da escrita. O meu pai e a minha mãe sempre falavam para mim: “Ah, você quer escrever. Mas, com o que vai trabalhar?”. Tinha essa visão na minha família, e demorei para me descolar dela e apostar na escrita. Então falei: “Não vou mais ficar pelas beiradas, vou mergulhar de cabeça. Vamos ver no que vai dar”.
Como é que essa “caminhada pelas beiradas” repercutiu no seu “mergulho”? De que maneira o seu interesse por outras linguagens, que não as artes visuais e a literatura, influenciou a sua produção?
No Brasil, na área de literatura infantil, agora nós temos uma reflexão crítica melhor, estamos formando uma bagagem maior, mas ainda não temos tradição, não temos formação específica para ilustradores de livros. Sempre falamos, entre os colegas, que vamos nos formando com a própria experiência, à medida que vamos trabalhando. Existem projetos bem interessantes sendo publicados, mas sai muito trabalho que olhamos e percebemos que está imaturo, não estava pronto. Essa questão tem a ver com a sua pergunta anterior. Passei um bom tempo fazendo livros e várias outras coisas em paralelo. Então, não me entregava completamente. Agora me sinto mais madura, mais pronta para o meu trabalho. Claro, estou sempre revendo, sempre aprendendo. O interesse em outras artes aparece na minha obra. Não fico lendo só literatura. Continuo me interessando muito por dança, música, teatro, fotografia. Sou fanática por tudo o que diz respeito à terra, à plantação. Agora, estou lendo um monte de livros sobre o assunto. De alguma forma, vou trazendo esses interesses para os meus livros.
É interessante a relação das mulheres da sua família com as artes, cada uma na sua linguagem, de alguma forma exercendo influência sobre você.
Tem uma questão bem forte para mim – que estou resgatando por conta de uma história que está na minha cabeça e tenho vontade de escrever – relacionada com o lado da família da minha mãe. Sei pouco sobre as mulheres desse lado da família. O que sei é que tem uma tataravó indígena. A minha avó passou tudo o que aprendeu com ela para a minha mãe. Elas moravam numa região do Rio de Janeiro que é bem conhecida por causa do petróleo – Macaé –, mas na época era mato. A minha mãe cresceu numa fazenda lá. Não tinha escova de dente. Então, a minha avó ensinava a minha mãe a pegar galhos para escovar os dentes. Tudo era curado com chá, tudo era plantado. Apesar de viver em um centro urbano enorme, tenho muito interesse nesse lado da família da minha mãe, na natureza, nas plantas. Do lado da família do meu pai, tinha a minha bisavó que tocava piano e que escrevia. E tinha a filha dela, aquela avó que não conheci e que escrevia poemas. O meu pai organizou um livro e deu a ele o título de Quatro gerações, porque entrariam nele os poemas da minha bisavó, os da minha avó, os dele mesmo e os de um representante da quarta geração, que seria eu. Ainda era bebê na época [risos], mas ele fez essa aposta.
Todas essas história fazem pensar no poder da arte como transformação. Você acredita que a arte pode mesmo transformar as pessoas ou são as pessoas que se deixam ser transformadas?
Acho que as duas coisas. A arte tem esse poder, sim, mas a gente tem que ensinar, mostrar que ela tem esse poder. Acredito que exista alguma relação entre esse poder da arte com a nossa desconexão cada vez maior com a natureza – como se não fizéssemos parte dela –, porque mexem com a nossa sensibilidade. As pessoas que tiveram experiências com a natureza, em algum momento, precisam resgatá-las, e as crianças que vivem em cidade grande e dentro de apartamento, principalmente, necessitam conhecer melhor o que a natureza pode oferecer a elas. Na infância, pode-se desenvolver uma conexão com a natureza brincando na terra ou no mato, observando as formigas, ficando descalça e suja, subindo em árvore. A coisa que mais amava na minha infância era subir em árvores e ficar lá. E o que a gente faz quando sobe numa árvore? Fica imaginando, observando. Sou muito grata porque tive esse privilégio de passar esses momentos em meio à natureza. Acho que sou artista porque tive esse tempo para mim. Quando estou fazendo um livro – não sei explicar, não é nada racional –, me conecto com esses momentos da infância. A partir dessa experiência com a natureza, exercitamos um olhar artístico. Nesse processo, acontece a transformação. Sentimos o poder transformador da arte quando ficamos disponíveis e nos abrimos para o mundo ao redor. Essa conexão pode ou não reverberar, produzindo um efeito transformador. Apesar dos momentos de desânimo, sou bastante idealista e acredito muito nesse poder. Não devemos romantizar. Se for pensar, sei lá, numa cidade como São Paulo ou Curitiba, na periferia, na rua, na realidade que se tem, parece um papo de maluco. Como é que você vai fazer algo assim numa escola? Como é que os pais vão parar para pensar sobre essas questões? Porque temos gerações e gerações que estão totalmente apartadas dessa consciência. Se for voltar lá para a época da minha mãe, sem nenhuma referência do que seja a arte na vida, havia a experiência do mundo natural, da roça. Eu me lembro da primeira vez em que pensei em escrever literatura infantil por conta de uma história que a minha mãe contava sobre a infância dela. Ela dizia que, para ir à escola rural, tinha que atravessar um riacho. Uma vez, ela achou o que parecia ser um filhote de pato e levou o bichinho escondido no bolso. Ele começou a crescer, mas a minha mãe foi passar 15 dias na casa da avó dela e, quando voltou, encontrou um ganso, que ficava para lá e para cá na cozinha. A minha avó ficou louca porque o ganso virou um bicho doméstico [risos]. Essas questões – como você entender o tempo, a mudança das estações, observar o céu e as transformações em curso – aguçam o olhar. É por esse motivo que a gente vê pessoas um tanto rústicas, digamos assim, que se emocionam com obras de arte apesar de nunca terem entrado num museu. Às vezes, a pessoa é analfabeta, nunca leu uma obra literária, mas cria um poema ou uma narrativa oral. Acredito numa definição mais ampla para a arte. Qual é o limite entre a arte e a tradição popular? É algo que sempre me atraiu muito.
Outro aspecto muito importante na sua obra é o silêncio. Qual o papel do que não está dito na construção da sua narrativa?
O silêncio propõe um espaço para a contemplação. Outro dia, estava dando aula e falando sobre estranhamento e desautomatização e disse algo assim: “Já repararam que, quando estão andando na rua, não tem quase ninguém sem fone de ouvidos?”. Nós estamos sempre preenchendo os espaços, os visuais e os auditivos. Estamos sempre ouvindo um podcast, uma entrevista, uma notícia, uma música. Adoro trabalhar ouvindo música, mas não em todos os momentos, senão não me escuto. E, pensando na obra literária, o silêncio também é importante. Nos livros em que são deixadas brechas para o leitor, esse silêncio faz com que ele se perceba, se ouça. Tem a ver com contemplação e escuta.
Falemos um pouquinho da sua produção artística. Seu livro Quase ninguém viu me remeteu a um universo meio kafkiano ou do expressionismo alemão. Parece, porém, que no início não eram essas as cores. Como você equaciona as suas influências na hora de criar uma obra? Como é o período de gestação de um livro?
O expressionismo alemão faz sentido. Tem um aspecto superimportante para mim do gesto. Algo que me interessa na imagem, e na produção de imagens, é a relação do corpo e dos rastros com o desenho: uma mancha que fica, uma mão que você passa sobre o desenho. Essa é uma atitude que tem origem no expressionismo. A questão das cores foi interessante, porque mudou completamente quando a palavra entrou. Esse projeto nasceu para ser um livro-imagem. Naquele primeiro momento, era muito forte a imagem da Mata Atlântica, aquele verde exuberante. Fiz um monte de imagens muito verdes. Então ficou uma monotonia, porque era tudo verde, tinha pouca variação. Depois de muitos anos engavetado, quando retomei o projeto, pensei que faltava a palavra para funcionar e precisava trazer a história que queria contar. Quando escrevi o texto, mudei muito, e fui ajustando até a versão final. Com o raciocínio de fazedora de livros, que pensa o todo, comecei a escrever e a rever as imagens e concluí que não poderia ter verde, porque é a primeira coisa que qualquer pessoa que já entrou numa mata ou viu fotos de uma mata imagina. Aí passei a trabalhar outros aspectos e deixei que as pessoas imaginassem o seu próprio verde e a sua mata a partir de alguns estímulos visuais. Então mudou completamente o livro. Se mexe em um elemento, impacta as outras escolhas feitas. Se muda uma ilustração de lugar, ou acha que tem de pôr mais duas ilustrações, de repente está mexendo na palavra. Quando acontece assim, tem um amálgama mesmo.
Pensando nessa ideia de reelaboração e prestando atenção no seu ateliê, gostaria de saber quais são os materiais que você usa.
Sempre misturo bastante os materiais. De uns anos para cá, tem alguns que se repetem, aqueles com os quais me sinto mais confortável e consigo me expressar melhor. Uso muito carvão, grafite – vários grafites e de várias formas –, pastel seco, nanquim, um pouco de ecoline. A ecoline é uma aquarela dissolvida, uma tinta bem transparente, mas que tem uma concentração de pigmento muito intensa. Nos trabalhos com aquarela, a gente utiliza muita água e consegue bastante concentração de pigmentos se usar bons pigmentos, mas ela é mais suave. No Quase ninguém viu, usei um pouco de aquarela no azul-turquesa e ecoline no vermelho, naquele vermelho intenso – dificilmente conseguiria esse resultado com aquarela. São esses os principais materiais. E o espaço físico também é muito importante, seja onde for e do tamanho que for, seja uma mesa ou o espaço que você tenha, porque é preciso um espaço para deixar as coisas. Não dá para guardar tudo e, no dia seguinte, arrumar tudo de novo. Algo que aprendi logo cedo com várias pessoas de quem fui assistente ou que foram meus professores é deixar na mesa o “rabicho” para o outro dia. Deixamos lá o trabalho para no dia seguinte conseguir entrar no ritmo. As pessoas falam que não existe bloqueio de escritor. Se já está com aquela história na cabeça, vai fazendo notas. Quando for se sentar, o artista não estará diante de uma página branca, já terá um monte de ideias por onde começar. Com a imagem, tem um pouco desse processo, dessa estratégia.
A autora tcheca Květa Pacovská disse que o livro ilustrado é a primeira galeria de arte de uma criança. Sei que você gosta dessa definição. Como ela se aplica aos seus livros?
Sou apaixonada por essa autora e pelas referências dela. Uma dessas referências, por sinal, é o Paul Klee. Ela estava nascendo, e ele já estava produzindo. Então, a Pacovská teve a influência da arte moderna europeia, que se revela, por exemplo, na abstração que ela traz para o seu trabalho. E eu estou tentando encontrar a minha forma de fazer, de produzir imagem, de entender os aspectos que são fundamentais na minha produção artística. Essa afirmação que a Pacovská coloca, para mim, é norteadora. O que eu gostaria que uma criança visse quando ela pegasse um livro meu na mão? Quero que ela tenha uma experiência com uma textura diferente, com um detalhezinho minúsculo escondido, com a variedade de tonalidades que se pode ter de uma mesma cor ou com as várias formas de se desenhar uma mesma coisa. À medida que fui estudando mais sobre a literatura e a produção de livros, me conectando com os conhecimentos da minha formação como artista visual e, claro, me envolvendo com a prática também, ganhei mais consciência do que estava fazendo e do que eu queria.
Você trabalha com algo que chama de texto potencial, um texto que se revela ao leitor curioso. Quais as experiências técnicas e estéticas que rondam esse processo de composição?
O texto potencial foi uma hipótese minha quando fiz o mestrado e estudei os livros ilustrados infantis contemporâneos. É a leitura de um texto global, de um texto maior. O texto potencial é o resultado da conexão entre todas as partes do livro ilustrado durante a leitura. Na verdade, é um nome na pesquisa acadêmica para diferenciar o tipo de leitura que o livro ilustrado infantil pede. Estava falando do texto literário, mas também da experiência estética. Tentava articular a ideia de que são necessárias ferramentas diferentes para ler esse livro. O texto potencial não está só na palavra, só na imagem ou só no projeto gráfico. Ele é o texto imaterial que resulta da relação entre todas as partes.
Imagem: ilustração do livro Quase ninguém viu, de Aline Abreu