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A ilustração do livro de literatura infantil no Brasil: um brevíssimo panorama

De acordo com o professor, pesquisador e ilustrador Rui de Oliveira (2008, p. 65-66), O patinho feio, publicado em 1915, é considerado o primeiro livro infantil ilustrado e editado em quatro cores no Brasil, destacando ainda que, na data da publicação, não constava na capa o nome do ilustrador Francisco Richter, mas apenas o do escritor Hans Christian Andersen e do coordenador da coleção Arnaldo de Oliveira Barreto.

Além disso, Oliveira (2008, p. 65-66) enfatiza que as ilustrações, “já naquela época, tinham uma comunicação não linear, própria da linguagem imagética”. A crítica literária Laura Sandroni (2013, p. 13) acrescenta que essas ilustrações eram consideradas da mais alta qualidade e contavam com boa impressão e acabamentos primorosos.

Em 1920, aconteceu a publicação do livro A menina do narizinho arrebitado, relançado no ano posterior como Narizinho arrebitado (segundo livro de leitura para uso das escolas primárias), além de O sacy, ambos de Monteiro Lobato. As ilustrações de Voltolino, André Le Blanc, Belmonte, J. U. Campos e Manuel Victor Filho, entre outros artistas, criaram com seus talentos as figuras marcantes do Sítio do Picapau Amarelo.

No ano de 1936, o Ministério da Educação, por iniciativa do ministro Gustavo Capanema, promoveu um concurso para livros de literatura infantil, abrangendo até o que se chamava então “álbum de estampas”. Esse movimento, considerado inovador, possibilitou que dois grandes ilustradores fossem premiados: Santa Rosa (1909-1956), com O circo, e Paulo Werneck (1907-1987), com a Lenda da carnaubeira. Sobre a qualidade desta última, o poeta Manuel Bandeira assim se pronunciou no prefácio:

No concurso aberto em julho de 1936 pela Comissão de Literatura Infantil do Ministério da Educação e da Saúde, esse livro obteve o terceiro prêmio na categoria A, isto é, álbuns de estampas para crianças menores de sete anos. Fui voto vencido no julgamento atribuindo-lhe o segundo lugar, contra o voto dos colegas de comissão. Bastará lembrar esse fato para demonstrar o apreço em que tenho as admiráveis aquarelas com que Paulo Werneck ilustrou o gracioso texto da Sra. Margarida Estrela Bandeira Duarte. De fato as imagens do artista encantaram-me pela sua delicadeza, ingenuidade que me parece tão próxima da sensibilidade da primeira infância, pela singeleza da composição e do traçado. Em Lenda da carnaubeira revela Paulo Werneck uma verdadeira vocação de ilustrador para a idade pré-escolar. Só depende agora dos nossos editores tirar-se partido dessa capacidade tão brilhantemente manifestada num concurso que tinha por fim principal descobrir vocações para um gênero ainda tão pobremente cultivado entre nós. (BANDEIRA, 1939)

A partir de 1969, as ilustrações de artistas brasileiros começaram a ser selecionadas para concorrer a prêmios internacionais, como a Bienal de Ilustração de Bratislava, na Eslováquia, que concedeu a Eliardo França a Menção Honrosa Maçã de Ouro (1975) pelas ilustrações de O rei de quase-tudo, que também foi a primeira obra a receber da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) o Prêmio Ofélia Fontes, como melhor livro para criança, em 1974.

A respeito desse livro, o pesquisador Peter O’Sagae (2017) observa: “Um dos mais importantes livros ilustrados da história da literatura infantil brasileira […] marcou a estreia de Eliardo França no campo da autoria palavra & imagem, após alguns anos unicamente como ilustrador de cores vibrantes e traços de sincera comunicação com as crianças”.

O traço e as cores vibrantes da aquarela líquida, muito comum nos trabalhos dos anos 1970, foram produzidos por Eliardo França há 40 anos e sugerem um ilustrador com domínio criativo, que discute nessa obra a relação entre a literatura infantil, o poder, a repressão e a censura que definiam o sistema e a ordem da vida brasileira na época. Esse movimento não foi feito apenas pelo texto verbal, mas também pelas imagens sutis e delicadas que mostram o autoritarismo nos gestos e nas expressões do rei.

De acordo com Oliveira (2013, p. 25), foi a partir dos anos 1970 e 1980 que, pela primeira vez, a profissionalização e o surgimento de ilustradores dedicados exclusivamente à ilustração de livros passaram a acontecer. E ainda complementa:

Vale lembrar que o Brasil possui atualmente a 8ª indústria de livros do mundo. Ante a grande demanda de designers, capistas, diretores de arte e ilustradores, não há mais espaço para o diletantismo, tampouco o exercício do ofício de ilustrar como uma atividade adicional e ocasional. Não temos dúvida de que a história e o desenvolvimento da arte de ilustrar, no que se refere ao aspecto técnico, formal e conceitual, estiveram sempre associados às questões tecnológicas e industriais. No Brasil não foi diferente. Não se trata de uma visão automática ou fatalista, é simplesmente uma constatação. A arte de ilustrar livros passou pela xilogravura, gravura em metal, litografia, cromolitografia, offset e atualmente impressão digital, portanto várias etapas ligadas à tecnologia de época. (OLIVEIRA, 2013, p. 25)

Outro traço da modernidade presente nessa época se refere à ênfase dada aos aspectos gráficos, não mais vistos como subsidiários ao texto. Obras como O caneco de prata (1971), de João Carlos Marinho, Chapeuzinho Amarelo (1979), de Chico Buarque, Flicts (1969), de Ziraldo, Domingo de manhã e Ida e volta (1976), de Juarez Machado, O ponto (1978), de Ciça e Zélio, Depois que todo mundo dormiu (1979), de Eduardo Piochi, e O menino maluquinho (1980), de Ziraldo, convocaram as ilustrações e seu visual como a essência do livro e não mais como um reforço ao texto verbal.

Sobre Flicts, o premiado ilustrador e autor de livros ilustrados Roger Mello (2012, p. 205-206) enfatiza: “O Ziraldo atingiu todas as dimensões narrativas do abstrato quando fez o Flicts! Um livro infantil revolucionário que mostra que o artista pode conseguir ser tão experimental como a criança! O Ziraldo é um divisor de águas aqui e no mundo”.

Nessa direção, Flicts é uma obra que rompe com a estética predominante para levar às crianças o mais moderno e inovador do desenho gráfico, que parece desafiar o leitor diante da abstração e da livre apreciação.

Tal inovação foi pensada, conforme observa a ilustradora e estudiosa Graça Lima (2009, p. 33), em uma década na qual os livros passaram a receber tratamento de produto voltado ao público infantil, sendo oferecida a possibilidade de uma leitura ao leitor iniciante através de obra com predomínio de narrativa visual, contendo pequenos textos de fácil compreensão.

Com a Coleção Gato e Rato, publicada a partir de 1978 e composta de 35 títulos, Eliardo França produziu um jogo lúdico entre ideias e construções linguísticas, compondo cenas que se apresentam ora engraçadas, ora tensas. São narradas por meio de textos curtos, diálogos rápidos, frases bem construídas, numa constante interação com as ilustrações bem coloridas, limpas e fluidas envoltas por traçados simples, que criam um ritmo ágil e estimulante para o leitor. Criados para um público definido – crianças na fase de pré-alfabetização –, os livros dessa coleção receberam muitos prêmios importantes, como o Ofélia Fontes (1978), da FNLIJ, o Jabuti (1978), da Câmara Brasileira do Livro, e o da Associação Paulista de Críticos de Arte (1986).

Apesar de pensada para esse público definido, o que sugere uma determinada compreensão de leitura, França (2012, p. 22) esclarece que “a criança não lê somente a palavra escrita; a imagem tem o mesmo peso da palavra”. Imbuídos desse pensamento, escritores e ilustradores alteraram sua maneira de pensar e de fazer o livro nesse momento: “Nos anos sessenta na Europa e nos anos setenta no Brasil, chega um movimento da ilustração não mais de interpretar, mas de acompanhar a narrativa, em que já não é mais a qualidade do desenho que está sendo julgada, mas o quanto ele fala, e com pouco pode-se contar muito” (MORAES, 2014, p. 27).

Com esse ideário sendo estabelecido, no decênio de 1980, outras formas de pensar o livro, bem como a chegada de novos escritores e ilustradores, passaram a figurar no segmento da literatura infantil. É o período em que Rui de Oliveira trouxe a experiência vivida no Instituto Superior de Artes Industriais, na Hungria, para o livro infantil. Angela Lago e Eva Furnari destacaram-se com suas narrativas visuais consideradas bem-humoradas e perpassadas por um fino e delicado tratamento gráfico. Jô de Oliveira arriscou-se e trouxe para o livro infantil a influência da arte popular por meio da xilogravura dos tão conhecidos cordéis. Ricardo Azevedo, com um traçado limpo e, principalmente, expressivo, narrou histórias do folclore brasileiro de forma brilhante. Destacaram-se também os nomes de Walter Ono, Ciça Fitipaldi, Cláudio Martins, Miadaira, Alcy Linares, Alice Góes, Elvira Vigna, Gê Orthof, Tato Orthof, Luís Camargo, Naomi Koruba, entre outros artistas.

Em 1987, houve uma ação para divulgar a arte de ilustrar livros com a exposição intitulada Mostra de ilustradores para crianças e, em 1989, a FNLIJ organizou o catálogo Ilustradores brasileiros de literatura infantil e juvenil, consolidando a importância desses profissionais.

Na década de 1990, houve algumas mudanças no tratamento dado aos aspectos visuais do livro infantil brasileiro. Apareceu uma geração de ilustradores designers, que se incumbiram também da elaboração do projeto gráfico, e surgiram novas tecnologias de produção e de impressão das imagens, que elevaram a qualidade do produto final.

Nesse momento, o resgate de nossas raízes culturais tornou-se o mote de muitas produções e refletiu-se nas paletas de cores e na organização gráfica do livro. Sobressaíram-se nesse período os trabalhos de Roger Mello, Mariana Massarani, Graça Lima, Ivan Zigg, Guto Lins, Elisabeth Teixeira, Helena Alexandrino, Nelson Cruz, Marilda Castanha, Luiz Maia, Odilon Moraes e Renato Alarcão.

Essa década pode ser considerada o ponto alto da participação dos ilustradores brasileiros no cenário internacional: Feira de Frankfurt (1994) e Feira do Livro Infantil de Bolonha (1995), que teve o Brasil como país homenageado.

Segundo Oliveira (2013, p. 25), desde o final dos anos 1980 e, principalmente, ao longo dos anos 1990, operou-se em nosso país, bem como em todo o mundo, uma profunda transformação em toda a história da indústria gráfica: “a impressão e a captura de imagens por processos digitais”.

O registro da imagem por scanner de alta definição, a utilização dos sempre renovados softwares na produção gráfica e na criação de ilustrações, de imagens diversas e de projetos editoriais e, finalmente, o transporte direto dessas imagens e da tipografia para a chapa de impressão, eliminando o fotolito, todos esses aspectos representaram uma revolução conceitual e industrial sem precedentes.

De acordo com Oliveira (2013), a ilustração de livros infantis e juvenis pelo processo digital, bem como a própria arte digital, exigiram novas reflexões estéticas. O autor ainda acrescenta:

Embora ainda no seu início, e diante de um futuro absolutamente imprevisível, mesmo assim já podemos anunciar alguns impasses quanto a essa nova realidade, a começar pela própria essência do aprendizado do ofício do ilustrador, onde a ausência da tradicional habilidade manual para desenhar e pintar não representa mais tanto empecilho para um bom criador digital. Frequentemente vemos a utilização por parte dos ilustradores – e isto é um fenômeno internacional – de processos artesanais acoplados a processos digitais em seu trabalho. Portanto, a arte digital não é a negação do passado; ela é a sua revitalização em novos estágios da criação. A ilustração digital não deve ser interpretada como uma ruptura com a tradição, o que seria, em si, uma leitura reacionária e conservadora. A colocação que se faz também é eterna: a questão não está localizada na linguagem, digital ou gráfico-pictórico-artesanal, e sim, no talento, na criatividade, no discernimento e cultura do artista que se dispõe a ilustrar para o mais precioso, crítico e fiel público que existe: a criança e o jovem. (OLIVEIRA, 2013, p. 26)

Marcado por um número cada vez maior de ilustradores, o início do século XXI despontou com a chegada de tecnologias e a criação de inúmeros cursos de formação em design, que geraram novas linguagens e novas possibilidades de trabalho com o objeto livro. André Neves, Andrés Sandoval, Cristina Biazeto, Fernando Vilela, Salmo Dansa, Suppa, Rosinha e Ana Terra são alguns nomes que marcaram esse novo momento da produção de livros de literatura infantil.

Independentemente do período histórico, as imagens ultrapassam gerações, perpetuando-se no imaginário dos leitores. A esse respeito, Oliveira (2013, p. 22) acrescenta, complementando, com toda reverência, uma frase proferida por Monteiro Lobato: “Um país se forma com homens, livros e imagens. Esta última no sentido mais amplo da palavra”.

 

Referências

BANDEIRA, Manuel. Prefácio. In: DUARTE, Margarida Estrela Bandeira; WERNECK, Paulo. Lenda da carnaubeira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1939.

FRANÇA, Eliardo. Entrevista. In: MORAES, Odilon; HANNING, Rona; PARAGUASSU, Maurício. Traço e prosa: entrevistas com ilustradores de livros infantojuvenis. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 14-31.

LIMA, Graça. A ilustração no Brasil. In: Secretaria de Educação à Distância / Ministério da Educação. A arte de ilustrar livros para crianças e jovens. TV Escola: Salto para o futuro, p. 29-44, ano XIX, n. 7, junho/2009.

MELLO, Roger. Entrevista. In: MORAES, Odilon; HANNING, Rona; PARAGUASSU, Maurício. Traço e prosa: entrevistas com ilustradores de livros infantojuvenis. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 200-221.

MORAES, Odilon. O livro ilustrado: palavra, imagem e objeto na visão de Odilon Moraes. Literartes, n. 3, p. 26-32, 2014.

O‘SAGAE, Peter. Quase tudo de volta ao rei. Disponível em: http://dobrasdaleitura.blogspot.com.br/2012/05/quase- tudo-de-volta-ao-rei.html. Acesso em: 19 jan. 2017.

OLIVEIRA, Rui de. O Brasil pela imagem: a ilustração de livros e o passado colonial. In: SERRA, Elizabeth. (Org.). A arte de ilustrar livros para crianças e jovens no Brasil. Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Rio de Janeiro: FNLIJ, 2013.

______. Pelos jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar para crianças e jovens. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

SANDRONI, Laura. Um pouco de história sobre a ilustração de livros para crianças no Brasil. In: SERRA, Elizabeth (Org.). A arte de ilustrar livros para crianças e jovens no Brasil. Rio de Janeiro: FNLIJ, 2013. s/p.

 

Imagem: foto da exposição Linhas de histórias: o livro ilustrado em sete autores, feita por Vinícius Prado