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Um exercício de criatividade e empatia

O mineiro Leo Cunha é um escritor profícuo: em três décadas de literatura, já produziu mais de 70 livros, incluindo títulos infantis, juvenis e colaborações. O segundo entrevistado do projeto “A arte de fazer livros” tem a fala mansa, mas afiada, e o jeito traquina de quem conhece bem as crianças. Mergulhando no universo dos pequenos, construiu uma obra que atravessa os mistérios e os encantamentos, que valoriza as descobertas e as amizades. Seus livros são, antes de tudo, um exercício de criatividade e empatia.

O escritor – organizador e tradutor de Balada da estrela e outros poemas, de Gabriela Mistral, publicado pela Olho de Vidro – vive a literatura desde menino, quando a mãe tinha uma livraria em Belo Horizonte.

A sua literatura, que já compreende cerca de 70 livros, é marcada por dois elementos bastante proeminentes: a ludicidade e a sensibilidade. Como criar livros que encantem os pequenos leitores, que despertem neles a natureza e a essência, algo que parece ter se perdido num mundo de algoritmo e telas?

É um dilema interessante que você aponta. Nós, adultos, achamos que essas coisas estão perdidas. No mundo das crianças, especialmente as menores, isso é muito vivo ainda. É natural da criança esse olhar de descoberta, não só da linguagem, mas do mundo e dos fenômenos. Esse encantamento constante com as pessoas, com a linguagem e com os objetos ainda é muito forte na criança. A gente é que vai podando isso, mas eu tento manter um pouco desse olhar, desse frescor.

A sua mãe, quando você era menino, tinha uma livraria, que depois se transformou em editora. Como as suas experiências de infância estão presentes na sua descoberta como escritor?

Isso foi muito forte para mim. Primeiro, eu já tinha muitos livros em casa. A minha mãe tem uma biblioteca que, hoje em dia, deve estar chegando nos 20 mil títulos. Imagina que loucura. Ela está com 82 anos – desde muito jovem ia juntando livros – e tem uma biblioteca que é uma coisa fenomenal. Eu já tinha muitos livros em casa – de todos os gêneros –, mas na livraria eu passei a ter esse contato mais com a literatura infantil e com os autores. A livraria trazia os principais escritores para Belo Horizonte para fazer lançamentos e participar de feiras de livros nas escolas. Então, eu passava uma tarde na escola com o autor tal – essa era uma das iniciativas da livraria da minha mãe – e às vezes ia para o interior fazer uma turnezinha com o escritor. Eram três ou quatro cidades. Quanto mais livros a gente conhece, mais o repertório se amplia. A gente vai vendo o estilo de cada um, o que é interessante e o que não é. E conhecer pessoalmente o escritor desmitifica muito essa coisa de ser alguém muito sério, sisudo, isolado. O que eu via não era nada disso. Eram pessoas divertidas, que gostavam de contar causos.

E houve algum desses tantos encontros que se tornou marcante?

O Orígenes Lessa, por exemplo, ficou muito amigo da nossa família. Quando a gente o conheceu, ele já era um escritor importantíssimo. A novela das seis, O feijão e o sonho, era uma adaptação do romance dele. Era um autor que tinha muitos livros de sucesso. Hoje em dia é que ele está meio esquecido, mas é um grande escritor – nos anos 70 e 80 era um dos principais. Ele conviveu bastante com a gente. Supersimples, ele contava casos, lia para a gente as histórias que estava escrevendo, brincava muito com a mulher dele – a terceira mulher, a Maria Eduarda, que também era muito divertida. Enfim, foi um escritor que me marcou muito, porque a gente ficou amigo, ia no sítio dele, e ele ficava lá em casa – na casa dos meus pais. Era um homem muito bonachão e um grande escritor. Foi até para a Academia Brasileira de Letras.

Nessa época você já começava a burilar textos, aventava a ideia de ser escritor?

Não, nem me passava pela cabeça. Claro, eu gostava de escrever para a escola, mas não pensava em ser escritor. Tanto que eu fui fazer outras coisas. Cheguei a fazer Economia, larguei, fui fazer Jornalismo. Na faculdade de Jornalismo é que me encaminhei para esse lado. Por mais que eu gostasse de ler, não pensava em ser escritor.

E o que é que levou você a fazer Economia, esse caminho tão diverso da escrita?

É muito doido, né? Nem eu sei explicar [risos]. Estava na moda. A gente tem que entender o país também. Em 80 e pouco, era um país de hiperinflação. O que mais se falava era economia e não-sei-o-quê. Eu achava que ia ser uma coisa bacana, que ia conhecer o mundo. Não sei, não sei. Hoje em dia eu acho ridículo ter passado pela minha cabeça que eu mexeria com números e teorias econômicas. Comecei Economia, mas teve uma greve geral, os professores ficaram três meses parados, e eu já aproveitei para sair.

E você já emendou com o curso de Jornalismo?

Eu fiz o vestibular para Jornalismo. Eu fazia Economia na UFMG e, como decidi parar no meio do ano, fiz vestibular para a PUC e entrei.

É possível enxergar também uma influência de dois autores: Sylvia Orthof, escritora de livros infantis, e o argentino Jorge Luis Borges. Como essa mistura de referências compõe o seu fazer literário?

Eu acho que, além deles, tem muitos outros. A gente tem que falar do José Paulo Paes – uma influência muito forte –, que é um poeta da palavra, um poeta da brincadeira. O Paes foi muito importante. A Sylvia é pelo humor, pelo nonsense, que são coisas que eu valorizo muito. O meu doutorado foi sobre comédia. A Sylvia também foi muito amiga nossa, de ficar lá em casa, a gente ir à casa dela. Eu admirava o estilo dela, o humor, a teatralidade. No caso do Borges, eu acho que a influência é mais no sentido de ser um escritor que falava muito sobre livros. A obra – toda adulta, nunca escreveu nada para crianças – tinha como grande assunto a literatura. Foi um autor muito metalinguístico: inventava livros, escritores, bibliotecas, tudo da cabeça dele. Inventava citações, traduções. E acho isso muito bacana, tanto que muitos livros meus têm esse lado metalinguístico. Eu cheguei, inclusive, a escrever um conto em homenagem ao Borges, que está no livro Nos labirintos de Borges, em que o ponho como personagem. Ele pega uma máquina do tempo, um táxi que é uma máquina do tempo, e vai parar, 20 anos depois da morte dele, numa escola. Vai conversar com um menino que está na internet – Borges não sabe o que é a internet, e o menino a apresenta a ele. Isso porque o escritor argentino gostava dessa ideia da viagem no tempo. Eu nem acho que é uma influência tão grande no meu texto, mas sim na ideia de pensar que os livros estão todos conectados.

Durante muitos anos, a literatura infantil pareceu focada mais no estereótipo da criança branca, de classe média, etc. Hoje vemos maior diversidade e ampliação. Qual é a importância desse processo de inclusão para a formação de novos leitores?

É fundamental. Não só a literatura, mas toda a cultura brasileira, ficou olhando para a Europa e para os Estados Unidos. Tinha um pudor, ou vergonha talvez, de encarar as suas origens e, no entanto, essas origens eram muito ricas, são muito ricas. O Monteiro Lobato trouxe muito da cultura popular: Saci, Cuca e vários outros. Misturava elementos da cultura popular com os clássicos: Minotauro, Hércules. O Lobato já fazia isso e, como somos todos meio que filhos dele, a gente conseguiu também, porque esse lado estava latente na literatura. Com a entrada de escritores negros, indígenas, ou que pesquisam grupos étnicos e raciais, isso floresceu, e a gente só tem a ganhar. Pelo lado do leitor, é importante, até pela ideia da identificação. Eu, homem branco, nunca tinha parado para pensar nisso, mas, considerando o ponto de vista das crianças negras e indígenas ou em situações desfavoráveis, tem sido bom o processo de mostrar esses outros lados da cultura e da sociedade brasileira.

Quando a gente fala do Monteiro Lobato, é inevitável tocar na questão do racismo. Parece até um pouco contraditório que ele, tendo essas opiniões controversas sobre miscigenação e tantos outros assuntos, tenha buscado justamente essa inclusão?

Era um intelectual controverso mesmo. Era inteligentíssimo, cultíssimo, sabia tudo da cultura brasileira e da cultura universal, mas talvez, até pela formação, ele fosse muito influenciado por essa visão discriminatória, de uma superioridade, principalmente nas cartas dele. Eu mesmo nunca parei para estudar isso, sei que tem umas cartas em que ele se revela uma pessoa preconceituosa, porém acho que não dá para negar o valor da obra. Não só do que tinha de imaginação e fantasia – os personagens maravilhosos, a Emília, o Visconde, as aventuras todas –, mas a própria valorização da cultura do interior, a presença de personagens populares e do folclore.

Você falou sobre identificação como leitor. Qual foi o livro que se transformou em virada de chave quando você era criança?

Olha, acho que foram vários. Eu gostava muito de histórias de turmas. Embarcar e conhecer uma turma, quem que era cada um, como eles se relacionavam, os líderes, os que seguiam, os rebeldes. Por exemplo, a série da Turma do Gordo, do João Carlos Marinho – O gênio do crime, O caneco de prata, Sangue fresco, Berenice detetive, toda essa série era genial para mim. Aí, do exterior, Os meninos da Rua Paulo, que também tem as turmas. E mesmo as histórias de amizade, como Tom Sawyer, Huck Finn. São histórias que me marcaram bastante pela questão das amizades e das turmas.

Por falar nessa questão das turmas, as crianças hoje parecem não ter essa ideia fixa das turmas. Será que elas almejam viver essas aventuras em grupo, sempre cheias de mistérios e perigos?

Talvez elas não se identifiquem. A literatura trabalha tanto com a identificação quanto com a projeção. Na identificação a gente pensa: “Ah, eu conheço alguém assim, meu vizinho, ou eu sou assim”. Na projeção: “Eu gostaria de viver essa aventura”. Acho que, em termos de projeção, continua: “Como deve ser legal ter uma turma”. Eu mesmo tenho alguns livros de turma. Na marca do pênalti, por exemplo, é uma história de turma com mistério, mais ou menos nessa lógica, só que com o universo do futebol. É muito inspirada em tudo que eu gostava quando era mais novo. Tenho um livro em parceria com o Ricardo Benevides que chama Turmas do prédio, da rua e do bairro e que tem a ver com tudo isso. E tenho outros que não são propriamente de turmas, mas são histórias de amizade. Eu ainda gosto muito dessas histórias.

Sobre essa mistura de futebol com turma, me lembro de uma conversa com o escritor chileno Alejandro Zambra. Na entrevista, ele comentou que todo escritor só escreve porque não sabe jogar futebol. É verdade? Você queria ser jogador de futebol?

Passei por essa fase [risos]. Nunca fui bom de bola, mas gostava de jogar para me divertir. Não era um jogador de talento. Nunca me passou pela cabeça que pudesse fazer nada disso. Eu não estava entre os melhores nem da minha turma, muito menos da escola [risos]. Agora não jogo mais – já tem uns anos que não jogo mais, porque arrebentei meu tornozelo –, mas jogava com os meus amigos duas ou três vezes por semana até uns 20 anos atrás. Gosto muito de futebol, acho que é um esporte bacana. Naquele livro, Na marca do pênalti, exploro bastante a paixão pelo futebol e o que acho que tem de interessante no esporte.

Por que você acha que ainda existe um certo preconceito, como se o esporte não pudesse entrar na literatura?

Não sei. Se você pega os Estados Unidos, tem muitos livros importantes que falam do boxe, do basquete, do beisebol. Inclusive, num livro que eu traduzi – um dos primeiros livros que eu traduzi –, um clássico da literatura infantojuvenil americana, o beisebol é central na história. Se chama O maníaco Magee, e é um livro que todo mundo lê, todo adolescente lê em algum momento. É uma história que fala de beisebol. Aqui no Brasil, realmente, não são tantos, mas tem o caso do João Carlos Marinho. Na série da Turma do Gordo, quase todos os livros têm a ver com futebol. O gênio do crime tem a ver, O caneco de prata tem a ver. Então, existem, mas tem um certo preconceito.

Você selecionou e traduziu os poemas de Balada da estrela e outros poemas, obra da chilena Gabriela Mistral, Nobel de Literatura. Apesar de ser um livro que pode ser enquadrado como infantil, a poeta não escrevia para crianças. Como foi o processo de escolha dos poemas que fazem parte do livro?

Foi um desafio bem grande. O Marcelo Del’Anhol, editor da Olho de Vidro, me mandou um livrão de não sei quantas páginas com a obra completa dela – são centenas de poemas – e falou: “Tenta encontrar um livro infantil aí”. Eu selecionei alguns, depois mudamos um ou outro, mas priorizei temas que achava interessantes para as crianças. Por exemplo: bichos, brincadeiras, relação pai e filho. Curiosamente, outro dia eu peguei um livro – quando fui ao Chile, há uns dois ou três anos, trouxe uma coletânea para crianças – e é totalmente diferente. Só um poema está entre os que escolhi. Achei curioso.

É quase um processo de interpretação pessoal, não?

É isso que eu fiquei pensando. Talvez também porque tem a questão da tradução. Eu achei que alguns poemas não ficariam tão interessantes. Os que escolhi são 19 no Balada da estrela, mas poderiam ser outros. Achei que a seleção ficou bem bacana e, felizmente, o livro teve uma boa resposta. Todo mundo fica encantado.

O livro foi importante também para resgatar um pouco da obra da Gabriela Mistral, que desapareceu das livrarias daqui nos últimos anos.

Tinha uma coletânea de poemas dela, traduzida pela Henriqueta Lisboa e publicada uns 50 anos atrás, e esse livro sumiu. Eu até consegui um exemplar num sebo há pouco tempo. Para crianças, nunca existiu um livro da Gabriela Mistral aqui. Depois da nossa coletânea, saíram mais duas, e meio que se criou um movimento de resgate da obra da Mistral. No Chile, em qualquer lugar que você vai, tem livros dela.

Isso me faz pensar sobre a relação do Brasil com a América Latina. Ainda que a gente tenha uma certa entrada dos autores de países vizinhos, não existe uma identificação do brasileiro como latino-americano. O quanto isso é prejudicial na divulgação da nossa literatura e no intercâmbio entre os autores no continente?

A gente nasceu meio de olho para o mar. A gente olha para a Europa, olha até para a África. A gente está de costas para a América Latina, não é? Esta é uma coisa engraçada: parece que o Brasil é um filetinho ali na beira do mar, mas tem que olhar mesmo para dentro, para dentro do país e para dentro do continente. Achei muito bacana quando o Marcelo me propôs a organização e a tradução do livro da Gabriela Mistral. Eu já tinha traduzido um texto do Cortázar para crianças, que é O discurso do urso, um livro do Antonio Skármeta, que é o Faísca, e um infantil colombiano. Já fui para o Chile, a Argentina, o Uruguai, mas acho que a maioria dos brasileiros pensa mais em conhecer os Estados Unidos e a Europa que a própria América Latina.

Isso reflete o porquê de o Brasil, apesar de produzir muita literatura e ter excelentes autores, não ser visto como um país literário.

Um pouco é a questão da língua também. Os argentinos, os chilenos, os uruguaios, os mexicanos, por exemplo, eles têm uma vantagem de compartilhar o idioma. Entre si eles dialogam, e dialogam também com a Espanha e com todo o mundo de língua hispânica. E o português já não tem essa penetração. Um pouco é por esse motivo, mas também porque a gente não se integra e não se vê como latino-americano.

E o que é que falta para a gente se integrar à América Latina?

Eu acho que passa por ter mais gente estudando essa literatura e essa cultura. Na música a gente também não conhece os artistas chilenos, argentinos, mesmo mexicanos. Falta ter mais gente publicando, mais gente estudando. Fui convidado agora há pouco para participar de uma pós-graduação em literatura infantil latino-americana. Esse tipo de iniciativa ajuda, porque já vai criar um corpo de pesquisadores. Eu acho que os eventos literários têm que convidar mais autores latino-americanos. Precisamos de mais intercâmbios, chamar mais esses autores e acompanhar melhor o que está acontecendo na América Latina. É algo difícil. Não dá para mudar uma chave de uma hora para outra. É um trabalho de formiguinha. O que o Marcelo fez, publicando a Gabriela Mistral, foi um passo importante. Se outras editoras fizerem isso com outros autores, vamos ampliando esse diálogo.

Em seus livros Um dia, um rio e O corte e a chama, ou A chama e o corte, você transforma tragédias ambientais em respostas poéticas para as crianças. A natureza e a necessidade de respeito ao meio ambiente têm passado ao largo dos pequenos à medida que estão cada vez mais inseridos em uma espécie de contexto digital? Qual o papel da literatura em reverter esse processo?

Nas grandes cidades, as crianças acabam se distanciando da natureza quase que inevitavelmente. A natureza vira algo exótico. É engraçado, porque é a coisa mais natural [risos]. Ir numa cachoeira, ir num rio vira algo inusitado. A minha ideia nesses livros foi de sensibilizar mesmo – não de fazer livro-denúncia, não de publicar algo panfletário, de jeito nenhum, mas de falar desse tema poeticamente. O que eu acho interessante nos dois livros é pensar o meio ambiente como um todo. A minha geração não conseguiu cuidar da natureza, a sua também não, quem sabe as próximas.

O bonito de O corte e a chama é que é um livro espelhado. Você escreveu um poema e depois fez esse espelhamento? Como foi o processo de criação desse livro?

Já fui escrevendo espelhado, fui escrevendo um pedaço e depois outro. Eu estava em um evento em 2018 ou 2019 lá em Araxá, o Fliaraxá, e participei de uma mesa com o Sérgio Abranches, ambientalista, cientista político e tal. Tratei do Um dia, um rio, e logo em seguida o Sérgio falou de como via a questão do meio ambiente na literatura adulta. Ele acabou, no meio do caminho, falando sobre estes dois males, o desmatamento e a queimada, e sobre como vão, cada um a seu modo e às vezes juntos, engolindo as florestas. Ali mesmo me veio a ideia de um livro com dois lados que fossem engolindo a história até o meio, onde o corte e a chama se encontrariam. Fui escrevendo de modo que um pedacinho de um lado espelhava um pedacinho do outro. Já foi criado assim mesmo. Quando mandei o original para a Pulo do Gato, eu falei que a ideia era ser um livro que tivesse duas capas. A editora Márcia Leite curtiu a proposta e topou fazer a obra.

E qual foi a resposta das crianças para o livro? Imagino que fiquem encantadas com a ideia de um livro com duas capas, duas histórias.

Então, eu não tive essa resposta ainda. O livro foi lançado no meio da pandemia. Não tive a oportunidade de conversar com as crianças sobre esse lançamento. No caso do Um dia, um rio, o livro tem cinco anos, e já tive respostas maravilhosas. Estou até curioso para ver como é que vai ser a reação da meninada diante do O corte e a chama. Eu já vi resposta dos adultos – professores, bibliotecários, escritores – diante da proposta do livro, mas das crianças ainda não tivesse essa chance. Espero que, passando a pandemia, eu tenha.

E como é que a pandemia afetou a sua criação literária?

Eu sinto muita falta dos eventos literários. As editoras me mandam para o Brasil inteiro, e eu topo tudo. Gosto de viajar, de ir às escolas, de conversar com a meninada. Mas a pandemia não me deixou parado. Eu tenho escrito muito, produzido bastante. Acho que cada um reage de uma forma. Acabei pegando esse tempo que sobrou e tentei usar de uma forma produtiva. Preferi fazer novos livros, pensar em novos projetos. Comecei a criar versões animadas de poemas meus. Eu fiz isso para dar uma vida para textos que estavam parados. Fiz vários assim. Foi a minha reação.

Você acha que a pandemia vai entrar na sua literatura? Você pretende falar sobre ela? Como explicar isso para as crianças?

Ah, vai aparecer, é inevitável. É um evento de proporção mundial e de impacto muito grande na vida de todos. Não tem como não falar, mas ainda não sei como. Tem algumas questões que demoro cinco anos para conseguir falar delas, tem outras que consigo falar delas imediatamente. A única coisa que consegui escrever sobre a pandemia foram crônicas, mas não uma história inteira que se passa nesse contexto.

Não é perigoso termos uma enxurrada de livros que tratem da covid-19 e esgotarmos o assunto?

Acho que depende de cada livro. O meu Um dia, um rio poderia ter ficado muito datado, mas não da maneira como a gente o criou – eu, a Márcia e o André Neves, o ilustrador. Embora fale de um fato, do desastre de Mariana, é abordado de uma forma universal. Ali, poderia estar falando de qualquer rio ou lago. Se eu fosse tratar da pandemia, tentaria algo que não estivesse tão preso ao fato, para que não se perdesse o interesse na leitura depois de dois ou três anos.

Você falou do André Neves, e isso me fez pensar em como é o seu processo de criação e de parceria com o ilustrador.

Quase sempre eu faço o texto, envio para a editora, e aí temos um diálogo sobre quem pode ilustrar. Pensamos no estilo desse artista, no daquele. Esse é mais realista ou mais simbólico, aquele é mais divertido ou mais abstrato. Pelo estilo do ilustrador é que a gente escolhe. Dependendo do ilustrador, tem uns que gostam de ir conversando com o escritor, trocando ideias, e tem outros que gostam de se recolher e apresentam as ilustrações já prontas. Eu respeito o jeito de cada um. No início, eu falo: “Se você quiser me perguntar alguma coisa, me mostrar alguma coisa, manda bala, mas, se você preferir ficar na sua…”. Cada ilustrador tem o seu jeito. Eu já fiz livros seguindo o caminho inverso. Tem um ilustrador lá de São Paulo, o Alex Lutkus, que cria as imagens, me manda, e eu bolo o texto a partir delas. Nós já fizemos quatro livros assim. É outro processo, totalmente diferente. É como se eu estivesse ilustrando com palavras um texto original feito com imagens. É um artista cheio de ideias. Se deixar, ele faz um livro por semana. E é sempre um desafio, e eu acho muito legal. O Um dia, um rio foi um desafio também. Eu funciono bem assim, instigado. Aí, eu vou buscar as minhas preferências, gostos, antipatias, angústias.

E você tem livros com outros autores também, como o Tino Freitas. Como é a experiência de escrever a várias mãos?

Tem vários. Com o Tino eu tenho dois, um já saiu e outro vai sair ano que vem. Com a Penélope Martins, de São Paulo, já tenho um pronto, e o segundo está sendo feito. Tenho com a Marta Lagarta, lá do Rio, e são bem-humorados, poéticos. É outra praia. Tenho com a Alessandra Roscoe, lá de Brasília. Eu gosto disso, mas para funcionar deve ter algumas coisas. A primeira é ter uma admiração mútua. Depois, deve ter um desprendimento, não pode ser: “Ah, ninguém mexe no meu texto”. Se você for com esse pensamento, não vai acontecer nada em parceria: tem que deixar a pessoa mexer no seu texto, e você mexer no texto dela. Tem que desapegar do texto e partir do princípio de que nem toda ideia sua é melhor, que o ritmo que está pensando para aquela frase pode não ser a melhor opção. É uma questão de diálogo mesmo e, geralmente, do diálogo saem ideias melhores do que as iniciais. O escritor, quando escreve e acha que a primeira versão dele está pronta, está perdendo muito. Eu sou de reescrever muito, refaço, refaço e refaço. Sou bem chato, fico procurando ritmo, essas coisas.

A gente tem testemunhado, por parte do poder público, a desvalorização e a banalização da cultura. O Julián Fuks, em seu último romance, fala em literatura de ocupação – uma ocupação de espaços, mas também de debate. Existe uma solução possível para retomar o protagonismo que os artistas foram forçados a renunciar?

Olha, eu acho que esse caos que a gente está vivendo, cultural e politicamente, é uma coisa que não tem como durar. Em dois anos já está entrando em autocombustão. Acho que a gente entrou numa espiral de destruição que é tão grande que vai passar rápido. As pessoas vão perceber que o artista não é o inimigo, o professor não é o inimigo. Aos poucos, a gente vai começar a retomar: voltam os festivais de livros, os eventos, os espetáculos. Já fui mais pessimista. Antes da pandemia, eu achei que a gente estava num caminho pior. A pandemia meio que revelou para as pessoas que não é isso, não tem esse perigo vermelho. É outro perigo. O problema é o fanatismo, a intolerância. Eu acho que a tendência é o pêndulo voltar. Ele foi lá para cima, e agora a tendência é voltar.

Todas essas teorias da conspiração são alimentadas pelas notícias falsas. Você, como professor de jornalismo e escritor, acredita que as pessoas aprenderão a identificar as fake news?

A tendência é valorizar os veículos, vamos dizer, mais profissionais. Foram acreditando no “zap”, e muita coisa que o povo do “zap” estava dizendo era bobagem. Vamos começar a voltar. Existe a ciência, existe a informação, e tudo o que está aparecendo agora mostra que a mídia, a ciência e a cultura não são o problema. Toda essa corrente anti-intelectualista, que demonizou a ciência, a educação, a arte, vai começar a regredir. A minha esperança, ao menos, é essa.

 

Imagem: ilustração de Leonor Pérez para o livro Balada da estrela e outros poemas.