Os livros que pela primeira vez amei eram livros da biblioteca do quarto da mãe. Livros de poesia que me chamavam pelo título, pela capa, por uma página aberta ao acaso. Mário de Andrade. Neruda. Baudelaire. Fernando Pessoa. Maiakóvski. Cecília Meireles. Emily Dickinson. T. S. Eliot. Drummond. Dante. Brecht. Lorca. Assim todos misturados.
Depois vieram romances, amores de Alexandria, amores do tempo de Salomão, dos tempos do cólera, guerras do tempo de Nabucodonosor, das colônias, dos impérios, sagas de família, histórias passadas em paisagem de neve, em noites do sertão, nos desertos, na noite das cidades, em quartos alugados, becos, bares, praças, histórias de traição, de loucura, de milagres.
No chão de uma livraria, na seção de poesia estrangeira, o corpo em flor de lótus viajava. Era o mar de Portugal, eram as flores de cacau dos astecas, um carvalho solitário em Louisiana, corvos nos jardins enluarados de Aghmat, bandeiras nas esquinas da cidade dos ciganos, filas de mães em frente às prisões de Leningrado, escadarias do altar de Nossa Senhora das Lanças, roseirais do Oriente, roupas sendo lavadas no rio Hanjiang, uma aurora em Nova York. Era um secreto prazer de abrir caminhos sem necessariamente seguir placas. Eram tempos e lugares que se abriam à margem das chamadas leituras obrigatórias.
Então vieram os livros amados com mais experiência de amor, contos labirínticos cheios de espelhos, escadas em espiral, navios no meio de tempestades, cidades fantásticas, casas regidas por fantasmas, diálogos atravessando a madrugada, duelos verbais, monólogos. E mais histórias. A história de Jonas, a história de Jó, a história de Judite, a paixão de Judas, a paixão de Cristo. Parábolas. Poemas. Salmos, elegias, réquiens, cânticos, baladas. Diários de viagem, diários de guerra. Sermões. Ensaios. Cartas. Fragmentos.
No chão de uma livraria, numa poltrona a 40 mil pés de altura, numa cama úmida de maresia, sobre a grama, na grande mesa de madeira polida da biblioteca pública, debaixo do sol de uma lâmpada, nesses espaços concentrados de leitura, nessas células de imaginação e escuta, quanta coisa acontecia, quanta coisa sempre aconteceu em mim. Era toda espécie de voz. Era toda espécie de amigo. Vozes inflamadas, revoltosas, em transe, vozes escuras como de um profundo sangue, vozes sutis, sensuais como aquarelas, vozes secas e duras como pontas de diamante. Meus amigos, todos meus amigos.
Imagem: Sonhos, de Akira Kurosawa. Em uma das partes do filme, um estudante de artes que contempla as obras em um museu descobre-se dentro de um dos vibrantes quadros de Van Gogh, passando por cenários de pinturas famosas e até conversando com o grande artista holandês. Na cena da foto, ele caminha pela paisagem do quadro “A ponte de Langlois em Arles”.