O ilustrador e escritor brasiliense Roger Mello é um desbravador das linhas e das formas. A sua produção ficcional é resultado de inúmeras experiências estéticas e também de suas reflexões sobre a construção da imagem e a sua relação com a palavra.
Premiado com o Hans Christian Andersen, o mais importante para a literatura infantojuvenil no mundo, é um sujeito eloquente e estudioso, capaz de transformar as suas viagens em literatura. Da inquietação tão íntima nasce o desejo de compartilhar seus pontos de vista e suas elucubrações sobre as voltas que dá ao redor do mundo.
Roger Mello é mais um dos convidados do projeto “A arte de fazer livros”. Neste episódio, ele conta um pouco sobre o seu processo criativo e os desdobramentos possíveis da narrativa visual para além de uma interpretação óbvia.
O seu descobrimento como ilustrador nasceu, principalmente, da sua natureza de leitor. Havia a ditadura militar e a impossibilidade de acesso à cultura. Como foi esse processo de encontrar na imagem uma possibilidade de ler e de interpretar a arte e o mundo?
Acho que nunca separei imagem e palavra ou mesmo a força narrativa das duas. Eu nasci em Brasília, que foi pensada por artistas, não só por intelectuais da palavra. Muitos eram generalistas que se interessavam também pela imagem. Tenho um personagem, um cartógrafo, que fala que desenhar é pensar com o traço. Essa frase me veio justamente vendo os traços do Burle Marx, do Athos Bulcão, do próprio Oscar Niemeyer. Tem uma foto do Niemeyer em que está com o lápis em uma mão e a outra mão na cabeça, como se houvesse uma distância entre o pensar e a fisicalidade do traço no papel. Quando começa o filme do Sebastião Salgado, há uma cartela em que vem escrito: “Fotografar: foto é luz, e grafar é ao mesmo tempo escrever e desenhar”. Sem traço, não tem desenho nem palavra. Cresci muito apaixonado pelos quadrinhos – eu fazia quadrinhos cantando. E os quadrinhos aproximam muito a palavra da imagem. Não consigo ver uma separação clara entre as duas. Eu digo isso em todos os lugares – sei que é uma frase de efeito dizer que palavra e imagem são a mesma coisa –, mas tenho tido cada vez mais provas da semelhança do que da diferença. O meu pai não era de ler muito, mas a minha mãe e a família dela tinham biblioteca em casa, e cada um lia um tipo de livro. A minha tia era formada em Letras e lia os autores clássicos, os contemporâneos. A minha mãe gosta de uma literatura, como ela mesma diz, de enredo – até hoje ela gosta de romance policial. Quando a gente estava de férias, havia na mesa sempre livros que estavam sendo lidos. E, no meio deles, tinha O gato malhado e a andorinha Sinhá, que não sei por que estava ali, mas para mim é o melhor livro do Jorge Amado. As ilustrações do Carybé são tão importantes quanto o texto. Eu via aqueles desenhos e pensava: “Nossa, dá para desenhar desse jeito”. A minha geração em Brasília se tornou uma leitora de imagens. A planificação da cidade, os jardins, os desenhos tortuosos do Lúcio Costa estavam aqui. É uma cidade estranha, porém o estranho é muito amigo da arte. E o que tem de estranho é o que mais me interessa. Vejo mais beleza no estranho que na beleza em si. A Clarice Lispector falava que Brasília se parecia com a insônia dela. As pessoas podem achar que isso não era um elogio, mas era na insônia que a Clarice realmente era ela mesma. Acho Brasília uma cidade muito bonita e vejo muita beleza fora dos cânones. Sou um grande admirador da arte brasileira, digamos assim, espontânea. E não é que a beleza não seja importante, mas ela é secundária na arte.
Essa estranheza é também provocadora, tira o artista do lugar-comum.
A arte não tem função e, talvez, essa seja sua maior função. Tirar você do lugar de conforto é importante, porque nem tudo na vida está de acordo com o que se tem de expectativa. Acho que tenho feito mais arte sobre aquilo que me incomoda do que sobre o que me tranquiliza. Já dei muita aula – mesmo não sendo professor, e respeitando essa profissão – e sempre falo do meu processo criativo. As pessoas costumam dizer: “Eu começo a fazer e, de repente, vem o bloqueio”. É um bom sinal. O bloqueio acessa essa região em que se está lidando com o insondável, senão você é só a estátua muda de si mesmo, apenas uma repetição. Quando chegou o movimento moderno aqui em Brasília, algumas pessoas diziam: “Chegamos à terra longínqua, à terra incógnita, onde não havia nada”. Mas havia sim. Havia um ser humano vivendo aqui, há dez mil anos, que fez inscrições em um sítio arqueológico em Bisnau, que já é Goiás, onde nasce o rio Urucuia, que engrossa a bacia do São Francisco. E havia a Toca da Onça, sítio arqueológico em Formosa, que já tinha pigmentação. Você fica pensando se aquilo é livro, museu ou outra coisa. E, claro, tem o desenho das crianças, que estão mais abaixo, porque é onde alcançavam. Não era uma terra incógnita a que aquelas pessoas chegaram com o movimento moderno. Adoro o Eduardo Góes Neves, arqueólogo de São Paulo, que fala coisas com as quais concordo muito. Ele diz que a gente tenta encontrar pirâmides na Amazônia, mas não quer entender que existe uma arqueologia da abundância. Não vamos encontrar pirâmides porque as populações ancestrais do Brasil plantaram árvores, fizeram engenharia florestal. Se fizessem pirâmides, estariam repetindo um movimento da arqueologia da escassez. Com mil anos, a cidade de Caral, no Peru, tem pirâmides, apresenta características muito semelhantes ao Egito e à Mesopotâmia. O Eduardo fala que estamos usando um ponto de vista e tentando encaixá-lo em um lugar em que não se encaixa. Então, por que tentar vestir o Brasil com uma roupa que não cabe? O Brasil precisa ser decifrado, porém não é estanque.
E como é que você transporta todas essas influências e referências para a sua obra?
Não dou conta. Quando tem algo que a gente gosta muito, é melhor nem mexer. Lembro que uma vez o Ziraldo, com quem trabalhei e que me formou, entrevistou o Oswaldo Montenegro. O Ziraldo, que é obcecado pelo traço e pela originalidade, perguntou: “Quando você é original?”. O Oswaldo Montenegro não hesitou: “Quando tento imitar alguém e não consigo”. Aí caiu um monte de fichas na nossa cabeça.
Se você pega o maior poeta beat, o Allen Ginsberg, por exemplo, ele sabia onde romper, porque conhecia muito bem as formas clássicas. Para você, qual é o valor da desconstrução como elemento de criação na arte?
Para rejeitar as musas, é preciso passar por elas. Gosto muito de um argentino chamado Enrique Dussel, que fala de uma descolonização. A nossa formação é muito eurocêntrica. Quando digo que as pessoas não sabem quem é a Noemisa, é porque não sabem mesmo. E por que não sabemos sobre a cidade de Caral ou não conhecemos as nações indígenas? Porque somos criados para rejeitar aquilo que é possibilidade de solução. Eu trabalho com as cores saturadas e sei que é difícil. Não é carnavalizar. Todas as vezes em que escolho uma cor, fica mais complexo. Nós, os brasileiros, os indianos – não tem como não dizer isso –, os mexicanos ou os africanos trabalhamos com uma incidência solar, sabemos como usar as cores mais solares. Você vê uma pessoa que colocou um laranja com um verde-cítrico e foi para a rua. Para um europeu usar essas cores, e não estou dizendo que são todos assim, ele rompeu todas as barreiras. Avant-garde total. Nós fazemos isso com certa tranquilidade, mas não é fácil. Eu uso vermelho profundo e rosa-shocking. Posso e devo. Se alguém fala que não posso, aí é que eu devo mesmo. Pensamos que o brasileiro é brega. E, se você reparar, a música brega é tão cheia de intervalos quanto a erudita. Por que o Caetano pega uma música brega e fica linda? Com a Adriana Calcanhotto, a mesma coisa. No fundo, era linda. Nós sabemos usar cores e usamos. O livro Pinturas e platibandas, da Anna Mariani, que mostra as casas, muitas em estilo art déco, com as bandeirinhas pintadas, é uma aula de cor. Ainda tem gente pintando essas casas com cores que, segundo a academia, não podia usar. O Almodóvar é um cara que soube ler o brega espanhol. Quando ele coloca um cantor brega, digamos assim, a raiz daquela canção talvez toque lá no passado. Para a arte, não importa se é brega ou se é chique. Não tem essa diferença. De repente, prefiro o brega a algo que é fantástico, está nos cânones, mas é anódino.
Você usa várias técnicas para criar os seus trabalhos. Como se dá essa escolha? Em que perspectiva a história que você deseja contar influencia os materiais e as técnicas que você vai utilizar?
Você falou de algo muito importante no processo de criação: a escolha. Quando escolho uma cor, uma capa, uma textura, estamos falando de dor. Se você escolhe uma coisa, não tem mais outra. Toda criança, quando desenha, sabe disso. Ela sabe da dor de escolher um lápis de cor. O Ziraldo, para fazer uma caricatura do Carlos Drummond de Andrade, fazia mil desenhos até chegar à versão final. Às vezes, um desenho que aparenta ter sido feito em quinze minutos envolveu um trabalho imenso, envolveu a dor da escolha. Quando criei o Meninos do mangue com lixo e plástico colados no papel, é porque fui fazer a direção de arte de um curta-metragem que falava sobre o Josué de Castro no mangue. Pensei que aquela era a hora de fazer o livro. Causava incômodo – de novo, o incômodo maior que o prazer – ver as raízes maravilhosas daquela árvore com dejetos presos. Sabemos que o mangue é um berçário da vida marinha, que as raízes protegem contra as investidas das marés, que é um ecossistema incrível, com poucas espécies vegetais, mas fundamental para a diversidade. Falei que teria que desenhar esse livro com plástico. É onde eu não seria a serialização de mim mesmo. Mais tarde, fiz o Carvoeirinhos com essa mesma técnica, e depois nunca mais.
Pensando em todos esses processos diretos ou indiretos de criação, como nascem os seus livros?
Os meus livros nascem das formas mais estranhas. Anoto tudo e guardo. Sou de fazer tudo no papel. Adoro canetas, lápis. João por um fio, que parece bordado, foi todo feito no lápis e na caneta. Faço as bonecas [protótipos] dos livros, ou bonecos, para ver como eles vão ser. Eu tenho isso em comum com o Odilon Moraes. Depois, saio viajando com essas bonecas. Fiz um livro todo branco, cheio de recortes, com detalhes em preto, verde-cítrico e amarelo-cítrico, para a China. O texto é do Cao Wenxuan. Borboleta limão conta a história de uma borboleta que queria desesperadamente um campo de flores. E fui para Seattle, para Bolonha, para Quito sempre com esse livro embaixo do braço. Acho que posso e devo trabalhar com uma arqueologia da abundância e questionar tudo. E me incomoda usar o termo “livro ilustrado” ou “livro de imagem”, porque o primeiro livro de que se tem notícia apresenta imagem, é ilustrado. Se livro é um lugar que tem palavra e imagem, não devo dizer “livro ilustrado”. É como falar água molhada. Quando eu faço parceria com a Mariana Massarani ou com o Felipe Cavalcante, quero chegar ao ponto em que aquele livro seja nosso. Teve um momento em que não conseguia desenhar mais nada, me dava uma preguiça. Então fui para o Marrocos e levei um caderno de viagem. Lá, com lápis de cor, fiz um diário gráfico. Desenhei e escrevi muitas coisas. A Roseana Murray viu o caderno e sugeriu de ilustrar as imagens com poemas. Tem um desenho em que estão três mulheres em Tamelet. Elas estão conversando, uma virada para a outra, e dá para ver que bate um vento. A Roseana escreveu sobre aquelas mulheres, e parece que aquela imagem ficou ainda mais rica. Esse livro, Jardins, é um dos que eu mais gosto.
Imagem: ilustração de Roger Mello para o livro Jardins, escrito por Roseana Murray