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Para nunca mais esquecer

Durante muitos e muitos anos, guardei comigo uma estranha recordação. Tão estranha que não comentava com ninguém, porque me parecia muito mais a lembrança imprecisa de um sonho do que qualquer outra coisa. E era assim: eu, muito pequeno, caminhava ao lado do meu pai, segurava com força a aba da camisa dele, com medo de me soltar e me perder, porque em cada uma das mãos ele levava uma bolsa com alguma coisa muito pesada. Andávamos por um tempo, já não sei se de dia ou de noite, se íamos por alguma rua movimentada. Mas recordo bem que subíamos a bordo de uma grande barca. Nos sentávamos bem na última fileira de bancos, no fundo da barca, ao ar livre. Logo atrás de nossos assentos, o mar, invisível mas muito presente com seus rumores inconfundíveis. Me lembro do cheiro salgado da brisa e dos respingos que chegavam até onde estávamos. Uma garoa marinha.
De repente, nessa lembrança-sonho, meu pai se levantava, me dirigia um olhar triste, me dizia: “Fica aqui sentado, não se mexe, eu vou ali e já volto”. E ele ia, e ele voltava, e ele já não estava mais carregando uma bolsa em cada mão. E então tudo se esfumaçava, virava névoa de esquecimento, uma história sem começo nem fim, só com aquele meio cheirando a maresia.
Até que um dia desses, numa festa de família, o marido de uma sobrinha disse que tinham contado a ele que, na época do regime militar, alguns livros foram confiscados das bibliotecas porque traziam títulos como O vermelho e o negro (um romance de Stendhal) ou A revolução das órbitas celestes (o tratado astronômico de Copérnico!). Meu pai riu e comentou: “É verdade. Os fascistas, além de desumanos, são muito burros”. E minha mãe sugeriu: “Conta pra eles o que aconteceu quando a gente morava na Bahia”. E meu pai se pôs a contar.
Naquela época nós morávamos em Salvador – ele, minha mãe, minha irmã mais velha, eu, minha irmã dois anos mais nova e outra que ainda estava para nascer – e tinha chegado o mês de abril de 1964. As pessoas que exerciam militância política, como ele, estavam sendo denunciadas e perseguidas, e uma das formas de identificar essas pessoas eram os livros que elas tinham em casa. E meu pai tinha muitos livros em casa. Livros de história, de filosofia, de sociologia, de política, além de muita literatura, gramáticas e dicionários, porque tinha sido professor antes de se tornar bancário. Se a polícia aparecesse em casa e topasse com aquela biblioteca repleta de obras “subversivas”, as consequências seriam imprevisíveis, mas, sem dúvida, graves para todos nós.
“Então eu peguei umas sacolas de supermercado, que naquela época eram de papel, coloquei uma dentro da outra, para reforçar, e enchi elas de livros, os mais perigosos. Por cima do último, pus umas roupas velhas, para disfarçar. Chamei você”, ele disse olhando para mim, “e a gente saiu pela rua, caminhando, até a estação das barcas que cruzavam a baía até Itaparica”. No meio do trajeto, ele ia até a beirada da embarcação, cuidava para que ninguém pudesse ver e… deixava cair as sacolas no mar, afogando seus livros, que ele tinha começado a reunir ainda garoto, lá em Cataguases, nossa mineira cidade natal, tão distante do mar.
Foi assim que descobri que minha lembrança não era um sonho indefinido entre os milhares de sonhos tidos e perdidos desde que me dei conta de pertencer à espécie dos sonhadores que somos nós, humanos. Era uma recordação verdadeira, enraizada na memória de um menino que mal tinha quatro anos então. Uma lembrança para mim, um pesadelo para meus pais.
Mais de meio século depois, já avançado um novo milênio, finalmente eu tinha aquela aula de história, uma aula da história do país e da minha história mais íntima e particular, gravada com os signos dos sonhos. “E quantas vezes foi isso?”, perguntei a ele. “Ah, várias vezes, umas cinco ou seis, porque eu tinha muito livro”. Pensei comigo, fazendo contas: meu pai tinha vinte e cinco anos, já era casado, tinha filhos, uma família para cuidar, e receava a perseguição. Perseguição que acabou vindo de fato, porque ele teve de responder a um processo, do qual conseguiu sair absolvido graças ao talento de um grande advogado, defensor dos direitos humanos e dos presos políticos. “O partido se organizou para financiar nossa saída do país”, ele explicou, “mas eu preferi enfrentar o processo, porque a família já era grande, ia ser muito difícil a gente se adaptar à vida no exílio”. Outros não tiveram a mesma sorte: foram presos, torturados, “desaparecidos” ou “suicidados”, como se dizia então.
“Por que você me levava junto?”, eu quis saber. Foi minha mãe quem respondeu: “A ideia foi minha. Um adulto acompanhado de uma criança pequena não levanta suspeitas, né?”. E assim descobri, com décadas de atraso, que ajudei meu pai a se proteger naquele momento tão difícil. E fiquei orgulhoso, em retrospectiva.
Aquela noite, depois que voltei para casa, acendi a luz do meu quarto de trabalho. Olhei para minhas estantes abarrotadas de livros, para os livros empilhados em cima da mesa, alguns dos quais escritos por mim. Poderia viver sem eles? Teria coragem de destruir meus livros, fazê-los desaparecer no fundo do mar?
Pensando assim, puxei a cadeira, me sentei ao computador e escrevi essa história para nunca mais esquecer.

Imagem: Joaquim Nery Filho.