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O atrativo e o nutritivo: fatiando ideias sobre livros, leitores e escola

Vivemos numa sociedade de consumo e, em nosso contexto, numa época de excessivo culto ao corpo – corpo que se alimenta cada vez menos. Se pensarmos na leitura, não é diferente. Levar o texto literário para ser saboreado pelas crianças em tempos de dieta é um grande desafio – função, em grande parte, desempenhada pelos professores. São eles que necessitam estar bem informados para propiciar uma refeição nutritiva aos seus alunos, não só dos clássicos, mas também das novas publicações que o mercado editorial apresenta. Essa oferta começa na seleção dos ingredientes. Como são escolhidos os livros para as crianças? Pelo tema, pelo escritor, pelo ilustrador, pelas imagens, pelo formato, pela textura, pela capa, pela interatividade, pela editora? Como você seleciona os livros? O que mais o encanta e atrai? E quando as crianças têm a possibilidade de escolher esses livros? Quais critérios de seleção elas usam? São os mesmos critérios? Olhamos para os livros com o olhar das crianças? Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (IPL/IBOPE), divulgada em 2020 (com os dados referentes a 2019), a faixa etária de leitores entre 5 e 10 anos foi a única que apresentou aumento: de 67% na pesquisa de 2015 para 71% na de 2019. É essa faixa etária que fica menos tempo, atualmente, nas redes sociais? É nessa fase que as crianças são mais amparadas pelas famílias e pelas escolas e recebem uma oferta maior de livros e de contação de histórias? Por que esse número diminui tanto à medida que elas crescem?

A leitura restrita a livros escolhidos por adultos e apresentados em forma de tarefa escolar contribui para a queda de interesse na leitura e transforma-se em um trabalho penoso e limitativo ao ser imposto, dessa forma, pela escola, já comentava Carmem Alberton, na década de 1980, em Uma dieta para crianças: livros. As crianças sabem muito bem escolher o que querem ouvir e insistem exaustivamente nesta ou naquela história, chegando a chamar a atenção dos adultos caso eles omitam alguma parte. O interesse dos leitores na seleção do texto literário é um ponto fundamental para a aquisição do gosto pela leitura, mas é necessária a provocação de novos interesses, a fim de aguçar o senso crítico e a preservação do caráter lúdico do jogo literário tanto na escola como em casa. O lúdico é importante na relação entre leitor e obra literária, pois precede e facilita a desconstrução do conhecimento, estimula a percepção e atua nas descobertas, nas relações a ser estabelecidas e nas funções a ser conhecidas.

Werner Zotz, professor, crítico e escritor catarinense, em Livro que te quero livre (2005), fala da preferência dos pequenos: “[…] tão importante quanto desenvolver e melhorar o paladar literário no jovem leitor é entregar-lhe um livro do qual goste […]”. E acrescenta: “[…] não existe uma receita pronta, pelo menos eu não a conheço. O educador vai precisar usar toda sua sensibilidade, tendo em mente que cada situação e ocasião têm aspectos muito particulares”.

Comumente se observa a interface entre o atrativo (o livro que o mercado oferece às crianças – leia-se às escolas, aos pais e aos professores) e o nutritivo (a leitura literária), uma diferença clara para quem tem formação na área de Letras ou Pedagogia, porém tênue para muitos profissionais que trabalham com a infância. Saber diferenciar um livro-brinquedo sem marcas literárias ou um livro informativo de um livro de literatura é importante para que não se cometa o erro de chamar tudo de literatura infantil. Livros somente atrativos podem ser usados pelos professores ao tentar mascarar como nutritivas suas escolhas, ofertando sopa rala em vez de um banquete de paragens imaginárias.

Na escola, os professores são atropelados pelas propostas curriculares, pela falta de material, pela pressa em dar todo o conteúdo. Ainda têm fome esses profissionais? Desejam algo novo em seu cardápio ou estão constantemente de dieta? Um livro pode encher a barriga, mas não adianta enganar o estômago, pois só uma boa história pode nutrir e sanar as emergências nutritivas. Os corpúsculos gustativos disseminados na língua permitem a gustação, mas é preciso ter o sentido do gosto e a sensação de prazer para aproveitar bem o alimento.

Cecília Meireles, em Problemas da literatura infantil, escrito em 1949, usa metáforas alimentares em suas considerações: “[…] a literatura não é, como tantos supõem, um passatempo. É uma nutrição” [grifo da autora]. Ao falar da literatura de tradição oral, Meireles afirma que era dela que “se nutria a criança, antes do livro, recebendo-a como um alimento natural nos primeiros anos da vida”. Usando termos como nutrição, receita e alimento, a autora aproxima dos leitores suas ideias, como os primeiros sermões tentavam se aproximar do quotidiano de seus ouvintes por meio de metáforas alimentares (BUNN, 2011). Com o olhar crítico para essas imagens e metáforas, observa-se que os títulos literários para as crianças se multiplicam nas prateleiras e tem-se a preocupação de que eles cheguem à mesa dos leitores, tornando-se nutritivos por meio da leitura. Essas metáforas são constantemente oferecidas aos professores, tentando aproximar o conhecimento da ideia de nutrição. Porém, que tipo de reflexão elas exercem na prática pedagógica?

Comer, pouco ou muito, é uma necessidade. Como lembra Alberton (1980), uma única condição é exigida pelos pequenos leitores: encontrar na obra a sua forma própria e peculiar de ver os seres e as coisas; seja com características surreais, estranhamentos, pelo fantástico, pelo nonsense, por uma ilustração e – por que não? – também pelo alimento, que pode servir como uma isca peculiar para os leitores. Talvez pudéssemos pensar em um banquete antropofágico a ser servido às nossas crianças? Um banquete repleto de pratos exóticos: pâncreas de Murilo Mendes, estômago de Ferreira Gullar, baço de Quintana, coração de Drummond, língua de Marina Colasanti, olhos de Sérgio Capparelli, acompanhados pelas alfaces de Ricardo da Cunha Lima e pelos vegetais de Tatiana Belinky. Mas, antes de pensar nos escritores, é importante olhar por cima do muro, perceber a produção contemporânea voltada para a infância e questionar: o que, afinal, se serve na bandeja aos alunos do Ensino Fundamental, por exemplo? O que você serve? O cardápio é variado ou tem um prato feito para cada dia da semana?


Cardápio escolar
Segunda: picadinho de leitura
Terça: bife à interpretação textual – acompanha a frase: “Tô frito!”
Quarta: escondidinho de texto desfiado
Quinta: feijão com correção de exercícios
Sexta: dobradinha de exercícios gramaticais e sobremesa para viagem


Em um cardápio como esse, supostamente nutritivo, que se oferece aos alunos em sala de aula, o texto literário não poderá mesmo ser saboreado. Os professores comeram os mesmos pratos, estão acostumados a esse paladar e têm dificuldade de inovar na cozinha, servindo assim comidas enlatadas.

Desde os anos 1970, as universidades brasileiras vêm sistematicamente refletindo sobre a relação entre literatura e ensino. Maria Tereza Fraga Rocco (1992) diagnosticou que uma das principais dificuldades no ensino da literatura no Brasil é o livro didático, que, salvo algumas exceções, apresenta roteiros de leitura, respostas prontas, cardápios tradicionais sem margem para a fantasia e a criatividade. Para a pesquisadora, na década de 1990, a grande maioria dos professores da rede pública afirmou usar o livro didático como instrumento principal em sala de aula devido à inexistência de material melhor ou à falta de tempo para pesquisar e preparar outro tipo de material. De lá para cá, o quadro não mudou muito.

Os professores precisam é de materiais que os estimulem continuamente e que lhes sirvam também de desafio, pois muitos manuais os amarram em uma rotina que lhes tira a liberdade e a criatividade. Eles acabam não se interrogando sobre o que transmitem, e os alunos, por sua vez, também não questionam o que recebem ou por que recebem. Vários professores acabam usando o texto literário apresentado pelo livro didático simplesmente como pretexto para a aula de gramática, como bem apontou Marisa Lajolo na década de 1980. Eles têm pouco tempo para a reflexão, para a escolha de materiais complementares, não são estimulados a ousar e a desvincular-se das cômodas propostas tradicionais. Não existe conhecimento ou troca de ideias quando se reduz o ensino da literatura a uma simples leitura e interpretação mecânica do texto, já apontava o escritor italiano Gianni Rodari (1982), assim como tantos outros teóricos, em suas reflexões.

Falar em Rodari logo traz à mente a ideia do jogo. Marly Amarilha, em Estão mortas as fadas? (1997) e Alice que não foi ao país das maravilhas (2006), aborda a literatura infantil e a manifestação do lúdico na poesia que se dá por diferentes mecanismos relacionados ao jogo. O jogo da linguagem (que faz a representação simbólica de uma luta), num sentido de combate, de competição, é fundamental para a atividade lúdica e se estabelece ao propor um desafio aos leitores: descobrir o significado do poema, do texto, das palavras que, propositadamente, vêm em linguagem obscura, cifrada, enigmática. É o mesmo jogo a que se refere João Cabral de Melo Neto: “procuro uma linguagem que o leitor tropece”. Amarilha aborda paisagens sonoras e a formação do ouvido pensante relacionado às atividades de narrar histórias em sala de aula, que pressupõem uma leitura prévia ou uma tradição oral, discutindo ainda sobre o valor das ilustrações nos livros infantis e o papel da escola.

Rodari apresenta uma vasta discussão sobre leitura e ensino não só na Gramática da fantasia (1982) como em vários textos, palestras e depoimentos, pensando o lugar da escola na década de 1960, uma escola que deveria ser grande como o mundo (1964, p. 137):

Existe uma escola grande como o mundo
nela ensinam mestres e professores,
advogados, pedreiros,
televisores, jornais,
cartazes de rua,
o sol, os temporais, as estrelas.
………………………………………….
Esta escola é o mundo inteiro
como é grande:
abra os olhos e você também poderá ser aprovado.

Na relação do alimento com o ensino, Rubem Alves, em Conversas sobre educação (2003), utiliza a cebola, o queijo e a pipoca para falar de escolas, alunos, pais e professores. Em “Sobre cebolas e escolas”, o escritor afirma ocupar a cebola um lugar de destaque no seu pensamento, tanto de forma científica e culinária (“entidades acidentalmente lacrimogêneas, de tamanhos variados, cheiro característico e gosto saboroso, que se prestam a ser usadas em molhos, saladas, conservas e sopas”) como poética – a cebola o faz pensar filosófica e pedagogicamente. Alves equipara a cebola ao pensamento de Jean Piaget e seus ciclos de desenvolvimento: como os círculos das cebolas, as escolas e a sociedade formam camadas sobrepostas que por vezes isolam os alunos. Para ele, a cebola é metáfora da aprendizagem: “[…] aquele círculo mínimo central é o corpo do aluno. […] o meio ambiente deve se tornar comida. Para que o corpo viva. O que não vira comida, o que não é vital para o corpo, não é aprendido”.

Os professores, seguindo a metáfora proposta, devem estimular o apetite dos alunos, pois, mesmo quando não estão com fome, sentem vontade de comer ao ver algo que os estimula. Ao falar da cozinha ornamental, Roland Barthes (2001) refere-se à consistência do “revestimento” dos alimentos: nesse tipo de cozinha, a categoria substancial dominante é a cobertura. Fazem-se todos os esforços para alisar as superfícies, para arredondá-las, para esconder o alimento sob o sedimento liso dos molhos, dos cremes, dos fondants e das geleias. Essa cobertura ornamental mascara, muitas vezes, a verdadeira beleza do texto.

Leyla Perrone-Moisés, em Roland Barthes: o saber com sabor (1983), lembra que o pensador francês pede um ensino sem opressão, clamando pelo “máximo de sabor possível”. É pelo mesmo sentido de gustação e de prazer que Rodari investe num ensino crítico e bem-humorado que faça com que as crianças apreendam o mundo de forma a experimentar o máximo de sabor possível. Pode-se lembrar ainda da metáfora da criança lambiscando, de Walter Benjamin (2004): ao tatear na noite o armário, ela encontra o livro e uma felicidade clandestina, como no conto de Clarice Lispector (1998).

Vida prática, essências, sumos, comprimidos e latarias, assim as angústias alimentares foram resumidas por Câmara Cascudo (2004): “[…] precisamos comer depressa, digerir depressa, abandonar a mesa como a um assento em brasa. […] olho no relógio”. Para o historiador, a industrialização dos alimentos reduz a cozinha a um armário de latas, da mesma forma que a mercantilização dos livros sem qualidade pode encher as estantes da escola de papéis coloridos. Segundo Câmara Cascudo, tem-se uma emergência nutritiva a ser sanada e, se tudo depende do instinto, da experiência e da intuição do cozinheiro, é preciso preparar cada vez mais os professores.

Deve-se acordar os sentidos para a boa degustação em sala de aula: o tato ao pegar uma obra literária, a visão ao apreciá-la, a audição ao ouvir uma história, o paladar ao saborear um texto e o olfato ao sentir os perfumes de um livro; é preciso lambiscar mais, devorar mais, comer algo natural em vez de diet, ou quem sabe dar voz ao livro pelas palavras de Mario Quintana: “Devora-me ou decifro-te!” (1977).

Ao considerar o atrativo e o nutritivo, pensando especificamente na literatura infantil e em sua relação com a escola e levando em conta as críticas mencionadas, dois fatores recaem sobre os professores no momento da seleção dos livros: primeiramente, eles devem entender a importância dos contos clássicos como um lastro para a vida leitora dos alunos e, ainda, precisam atualizar constantemente seu repertório, pois as crianças de hoje não são as mesmas de dez anos atrás. Por esses motivos, não se pode escolher obras apenas pela aparência estética, mas procurar um bom casamento entre palavras e imagens. Não se deve também jogar toda a culpa da falta de livros para a escola. Cada professor deve ter sua biblioteca pessoal, adquirir títulos que possam ser utilizados no contexto escolar com abordagens variadas e trabalhados com diferentes grupos de alunos. Aqui se conta também com o apoio das editoras com seus projetos editoriais, a produção de catálogos, os sites interativos, os materiais impressos e digitais que podem auxiliar os educadores nesse processo de escolha. É totalmente possível unir o atrativo e o nutritivo. E se vê isso pelo louvável esforço de escritores, ilustradores, editores, tradutores e outros profissionais que desempenham um bom trabalho, pois se sentem responsáveis pela formação de leitores. Depois de tanto esforço, entra a parte dos professores: fazer com que as crianças saboreiem o cardápio tão híbrido de sabores que é a literatura infantil é um grande desafio para todos os cozinheiros.

 

Referências

ALBERTON, Carmem et al. Uma dieta para crianças: livros. Porto Alegre: Redacta/Prodil, 1980.
ALVES, Rubem. Conversas sobre educação. São Paulo: Versus, 2003.
AMARILHA, Marly. Alice que não foi ao país das maravilhas. São Paulo: Vozes, 2006.
______. Estão mortas as fadas? São Paulo: Vozes, 1997.
BARTHES, Roland. Mitologias. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades; 34, 2004.
BUNN, Daniela. A imagem alimentar e o advento do menor na literatura infantil: estranhamentos de Gianni Rodari. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-graduação em Literatura, Florianópolis, 2011.
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1984.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Roland Barthes: o saber com sabor. São Paulo: Brasiliense, 1983.
QUINTANA, Mario. Caderno H. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1977.
ROCCO, Maria Tereza Fraga. Literatura e ensino: uma problemática. São Paulo: Ática, 1992.
RODARI, Gianni. Gramática da fantasia. Tradução de: Antonio Negrini. São Paulo: Summus, 1982.
______. Il libro degli errori. Torino: Einaudi, 1964.
ZOTZ, Werner; CAGNETTI, Sueli de Souza. Livro que te quero livre. 3. ed. Florianópolis: Letras Brasileiras, 2005.