Silêncio visual e sonoro.
É o que o livro mais pede: um minutinho ou dois (ou muitos mais) de quietude visual e sonora. Ninguém gosta de ler com barulho, com luzes pipocando. Mas onde conseguir uma boa dose de paz e sossego hoje em dia?
O rádio e a televisão não fazem silêncio. O tocador de MP3, o aparelho de som, o videogame e o cinema também não. Seria loucura se fizessem, foram inventados justamente para encher nossos olhos e ouvidos de estímulos maravilhosos. Pensando bem, quase nada faz silêncio neste mundo.
O livro faz e pede silêncio. Ao menos o livro de papel.
A experiência silenciosa que um bom livro de papel propõe é única e intransferível, ela é fruto da potência máxima do texto e das figuras, tudo paradinho, quietinho, sem movimento nem som. Se um dia o livro de papel for totalmente substituído pelo livro eletrônico, é importante que a experiência do silêncio da leitura seja preservada.
Os livros eletrônicos, com texto e figuras em movimento, coloridas e vibrantes, com situações interativas, com trilha sonora, efeitos acústicos e vozes, são muito atraentes, não resta dúvida. Livro-filme, livro-videoclipe ou livro-jogo, o nome não importa tanto, eles são sempre muito sedutores. Mas são outro tipo de experiência sensorial e intelectual. Não substituem a experiência profunda que apenas o livro-livro pode proporcionar.
Se isso é válido para as obras produzidas para o leitor maduro e crítico, capaz de refletir sobre as qualidades e os limites das muitas formas de representação artística, é mais válido ainda para as obras produzidas para o leitor iniciante, que está começando a tomar contato com essas muitas formas de sensibilização.
O livro-livro é uma máquina de sensibilização contraditoriamente poderosa e frágil ao mesmo tempo. Poderosa, porque é capaz de provocar na mente do leitor de qualquer idade uma grande onda, um genuíno tsunami sensorial e intelectual. Frágil, porque demanda constantes esforços para sua preservação, como se fosse uma espécie animal ameaçada de extinção. Ele é o panda ou a morsa dos bens culturais.
A televisão ou o videogame não precisam de amplas campanhas de formação de telespectadores ou de jogadores. Dificilmente encontraremos pais e educadores distribuindo panfletos incentivando as pessoas a passar mais tempo na frente da tevê ou do computador. Já o livro-livro precisa, precisa MUITO de amplas campanhas de formação de leitores.
O livro-livro é um objeto tão frágil que, em sua defesa, os próprios escritores às vezes brigam feio com os supostos parceiros na campanha de formação de leitores: os editores, os livreiros, os professores e os contadores de histórias.
Brigam com os maus editores que preferem investir apenas em best-sellers estrangeiros. Brigam com os maus livreiros que tratam a literatura escrita para crianças como algo inferior. Brigam com os maus professores que assassinam, no ensino básico, qualquer possibilidade de os alunos um dia se apaixonarem pela leitura e pela literatura. Brigam com os maus contadores de histórias que, ao adaptar um livro, apenas criam um substituto audiovisual para esse livro, que não será lido.
Breve história, vasta aventura
O conceito de infância é relativamente novo na história da humanidade. O historiador francês Philippe Ariès, em sua célebre História social da criança e da família, argumenta que a infância como nós a conhecemos começou a tomar forma somente nos últimos quinhentos anos. Do século 16 para trás havia, é claro, os pequenos seres biológicos chamados crianças, mas não a percepção subjetiva de infância.
Até pouco tempo atrás as crianças ingressavam cedo no mercado de trabalho, auxiliando os pais ou aprendendo um ofício, na cidade ou no campo. Durante a Revolução Industrial, a mão de obra infantil era muito explorada nas fábricas. Nessa época a importância dos brinquedos e das brincadeiras para o desenvolvimento emocional e intelectual das crianças não era conhecida.
Mas no início do século 20 a situação começou a mudar. A valorização da brincadeira na infância entrou na pauta, passou a ser debatida graças à militância da educadora sueca Ellen Key e de outros precursores.
Logo que foi elaborado e adotado pela sociedade moderna, o conceito de infância deu origem a inúmeros conceitos aparentados, entre os quais o de literatura infantil. Bastou juntar a invenção máxima de Gutenberg, agora aperfeiçoada pela Revolução Industrial, com a nova instituição burguesa chamada escola primária, para que acontecesse a reação química tão desejada: livros para a molecada.
A literatura escrita para crianças tem sido há décadas um segmento bastante lucrativo do mercado editorial. Hoje a infância é antes de tudo um ótimo negócio. No planeta inteiro, uma quantidade incalculável de livros publicados para os pequenos leitores movimenta anualmente zilhões de dólares.
É claro que o mercado editorial está apenas acompanhando uma tendência já fortalecida nos dois mercados culturais mais poderosos, o cinema e a televisão, que movimentam zilhões de zilhões de dólares com o vasto público infantil. São cifras tão fabulosas, pulverizadas por nações e economias tão diversas, que ninguém ainda conseguiu computar.
No Brasil, o primeiro grande momento da literatura para crianças foi com o pai-fundador, Monteiro Lobato, nas décadas de 30 e 40 do século passado. Então, se o segundo grande momento foi na década de 70, com os talentosos filhos literários de Lobato (Lygia Bojunga, Tatiana Belinky, Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Ziraldo, entre outros), hoje certamente estamos vivendo o terceiro, com os netos e bisnetos não menos talentosos (Índigo, Leo Cunha, Roger Mello, Ilan Brenman, Heloisa Prieto e tantos outros).
Na figura principalmente de uma boneca de pano desbocada e rebelde, Monteiro Lobato trouxe para a literatura infantil de sua época a transgressão e a irreverência politicamente incorreta. Sua personagem mais bem realizada, a pequena Emília, logo se transformou numa figura literária gigantesca, dessas que rompem com qualquer classificação redutora.
A questão agora não é mais a segmentação etária, que separa do universo adulto o infantil. Na literatura brasileira, Emília tornou-se uma protagonista feminina tão carismática quanto Capitu, Diadorim e Macabéa. Afinal, era pela boca de Emília que o escritor divulgava sua própria opinião, sempre muito crítica, sobre o Brasil e o mundo.
A professora Nelly Novaes Coelho, em seu livro Literatura infantil, acerta na mosca ao dizer que Emília é “o protótipo-mirim do super-homem nietzschiano”, uma personalidade afirmativa e individualista, capaz de grandes realizações mas também de grandes injustiças. É justamente a dualidade de caráter o que faz dessa boneca assertiva e mandona uma figura tão interessante.
Com a morte de Lobato, somente na década de 70, depois de um intervalo modorrento animado mais pelas histórias em quadrinhos e pela televisão, um novo período de pujança e criatividade volta a agitar a literatura escrita para crianças. Nessa época, um grupo grande de talentosos escritores reuniu-se nas páginas da revista Recreio, da editora Abril. Sua primeira e mais importante dentição circulou de 1969 a 1981.
Esse extraordinário florescimento da literatura escrita para crianças, agora repleta de personagens irreverentes e subversivos, filhos legítimos e bem-vindos da irreverente e subversiva Emília, tem início curiosamente no pior momento da ditadura militar.
Num breve ensaio intitulado “Pressões e expressão”, incluído na coletânea Silenciosa algazarra, Ana Maria Machado observa que “não houve uma ação oficial contra a literatura infantil, enquanto o teatro, o cinema e sobretudo a música popular foram tremendamente perseguidos nessa ocasião”. Os livros para o público adulto também sofriam demais com a censura. Como os livros infantis conseguiam passar incólumes? Conclusão irônica: os militares provavelmente não liam para os filhos e netos.
Do fim da ditadura militar para cá, a situação só fez melhorar. É certo que nosso país ainda não é um país de leitores. É certo que aqui a cultura eletrônica e audiovisual ainda dá de dez a zero na cultura letrada. Mas não resta dúvida de que nosso mercado editorial evoluiu demais, e continua evoluindo. Nunca foram publicados tantos livros para crianças e adultos quanto agora.
Segundo o Censo do Livro, encomendado pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), nossas editoras lançam perto de 1.700 novos títulos por mês. São mais de vinte mil por ano. Graças às gigantescas compras do governo, os títulos didáticos e literários representam uma fatia grande desse mercado.
Para menores e maiores, sempre
Em certo momento do breve ensaio intitulado “Três maneiras de escrever para crianças”, C. S. Lewis aparece com uma afirmação inquietante: “uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim”. Que absurdo é esse? Quer dizer que os livros que cativam os pequenos leitores, mas não seus pais e professores, é um livro medíocre, sem qualidades salientes?
A provocação lançada pelo autor de As crônicas de Nárnia pretende, na verdade, enfatizar a autonomia da literatura escrita para crianças. Não se trata de uma literatura menor, que serviria de suporte para a alfabetização e de escada para a Literatura maior, com inicial maiúscula, escrita para os adultos. Trata-se de um gênero literário pleno, com suas próprias convenções, e por isso diferente de todos os outros.
C. S. Lewis está apenas nos conscientizando de que o rótulo literatura para crianças disfarça uma estratégia secreta. São contos e ficções muitas vezes híbridos (texto + imagem) que, produzidos para crianças, mesmo assim não abrem mão de seduzir também os mais velhos.
Minha própria experiência confirma isso. Só comecei a me interessar verdadeiramente pela literatura infantil depois dos trinta anos de idade. Até então eu acreditava, em consonância com o senso comum, que os livros para crianças eram algo menos interessante. Porém, ao tomar contato com a obra de Lygia Bojunga, tudo mudou. Aconteceu a epifania. Logo vi que a autora de O sofá estampado não é apenas uma grande escritora de livros para crianças. Lygia Bojunga é uma grande escritora, ponto. Tão importante para a cultura brasileira quanto Hilda Hilst e Lygia Fagundes Telles.
Finalmente entendi que há escritores geniais que escrevem histórias para crianças porque, como disse C. S. Lewis, essa é a forma artística mais apropriada para expressar o que eles querem de fato expressar.
Desde então eu leio os bons livros infantis não por dever profissional, mas por puro prazer estético. Por saber que não encontrarei em outro lugar (na televisão, no cinema, na música, no teatro, nos quadrinhos, na pintura, na literatura adulta) a experiência única que eles proporcionam.
Imagens-imaginação: vórtice
Linhas, superfícies e volumes em expressivas reviravoltas.
Luz e cor abrindo as portas da percepção, da fantasia, do delírio poético.
Semelhanças e contrastes, tensão espacial, ritmo ora delicado, ora atrevido, proporções e distorções. Sorrisos e caretas. Humor rejuvenescedor, muito humor rejuvenescedor. O mundo como ele é, chato e sem brilho, transformado agora em mil mundos diferentes, nada naturalistas.
Acompanhando a evolução do texto, também a ilustração dos livros para crianças está vivendo um grande momento criativo no Brasil. Já faz um bom tempo que o ilustrador deixou de ser apenas o profissional que repete, com imagens previsíveis e redundantes, na linguagem do cartum ou dos quadrinhos, o que o texto já está falando. Agora o ilustrador é coautor dos livros, um cúmplice conceitual do escritor. Quando não é ele mesmo o próprio escritor.
Artistas como Graça Lima, Nelson Cruz, Renato Moriconi, Fernando Vilela e Odilon Moraes levaram a ilustração dos livros infantis para o universo das artes plásticas. Tornaram-se alquimistas da imagem, constantemente pesquisando novas técnicas e soluções visuais, sempre praticando os ensinamentos das vanguardas. Tornaram-se amigos muito próximos de Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Di Cavalcanti, Portinari, Volpi e outros mestres, daqui e de fora.
Hoje nós encontramos nos livros para crianças a libertadora e maliciosa indisciplina do impressionismo, do cubismo, do expressionismo, do surrealismo, da pop art, do hiper-realismo fotográfico. Essa bem-vinda renovação multiplicou as possibilidades, trazendo para pertinho dos olhos das crianças – às vezes, em narrativas sem texto algum, feitas apenas de ilustrações – o silêncio vibrante da gravura, da modelagem, do origami, da fotografia, da colagem e da mistura de técnicas artísticas.
Quais são as novas regras do jogo?
A partir das entrevistas e dos textos teóricos de Ana Maria Machado, Nelly Novaes Coelho e Tatiana Belinky sobre a literatura infantil, publicados em revistas e livros, elaborei o decálogo abaixo, principalmente para os novos escritores interessados em escrever para crianças.
Certamente não é um conjunto de regras que a espevitada Emília aprovaria. A boneca detestava esse velho costume da maioria dos adultos, sempre tão severos e sentenciosos, de criar regras e mandamentos para tudo na vida. Mas quero acreditar que um decálogo como esse, se bem compreendido, ajudará a evitar que muitos livros ruins superlotem as livrarias, as bibliotecas e a cabeça das crianças.
Dez mandamentos da literatura infantil
1. Evitar a infantilização da linguagem e das imagens;
2. Não ser professoral nem moralista;
3. Evitar os estereótipos e os clichês literários e visuais;
4. Não subestimar a inteligência do leitor;
5. Questionar os preconceitos e as verdades prontas;
6. Não fugir dos temas proibidos;
7. Investir nas sutilezas e no vocabulário mais elaborado;
8. Propor experiências literárias e visuais enriquecedoras;
9. Saborear a boa literatura infantil brasileira e estrangeira;
10. Conviver prazerosamente com as crianças.
Uma rápida passada de olhos pelas recomendações acima deixa bem claro de que lado deve ficar o escritor de livros infantis: do lado da criança, sempre. Não do lado dos pais, do professor, do presidente da República ou do papa, mesmo que o escritor também seja pai, mãe, professor, professora, presidente da República ou papa.
Não é difícil perceber que mais da metade das recomendações diz respeito também à literatura para o público adulto. Afinal, não dá para negar que os melhores romances, contos, poemas e crônicas da literatura brasileira e estrangeira desmontam os estereótipos e os clichês literários, batem forte nos preconceitos e nas verdades prontas, enfrentam corajosamente os temas proibidos (violência, morte, sexualidade, racismo etc.), sempre tratando com carinho e respeito a matéria-prima da literatura: a linguagem. Em nome das experiências mais fluidas e enriquecedoras, também os melhores livros para os marmanjos recusam, em todos os níveis de significação, a banalidade e o politicamente correto.
Essa correspondência normativa evidencia o fato de que a boa literatura infantil não é apenas uma escada para a boa literatura adulta. É uma arte autônoma, com seu código próprio, com seu jogo de forças particular. É uma arte capaz de promover uma interação singular, muito diferente da proporcionada pela literatura adulta. Está explicado por quê, como pensava C. S. Lewis, os bons livros feitos para crianças desafiam e encantam também os mais velhos.
É preciso lutar furiosamente contra o preconceito dos leitores menos esclarecidos, que encaram a literatura feita para crianças como uma arte menor. Esse preconceito restringe, por exemplo, a visibilidade na imprensa cultural. É fato que os jornais e as revistas de grande circulação reservam seu espaço nobre para a literatura adulta, destinando às resenhas de livros infantis apenas as poucas páginas dos raros suplementos para crianças.
Também os prêmios literários mais importantes, como o Nobel ou o Camões, simplesmente esnobam os autores que escrevem para crianças, que acabam segregados numa realidade paralela de segunda ordem.
O escritor e cineasta João Batista Melo, em seu estudo sobre a infância e o cinema infantil intitulado Lanterna mágica, denuncia uma variante desse preconceito, muito viva e devastadora no universo cinematográfico.
Citando o crítico norte-americano Tim Morris, especialista em literatura e cinema para crianças, João Batista Melo nos lembra, no final de seu livro, de algo muito importante, que raramente percebemos: “na relação de alteridade criança-adulto, ao contrário de outras dualidades humanas, como raça ou sexo, está o único caso em que é possível já ter sido o outro alguma vez”. E conclui: “isso já seria motivo para que houvesse maior abertura e compreensão por parte do mundo adulto em relação à infância”.
Faço minhas suas palavras finais.
Sugestões de leitura
História social da criança e da família, de Philippe Ariès. LTC Editora, 1981.
Literatura infantil: teoria, análise, didática, de Nelly Novaes Coelho. Moderna, 2002.
“Pressões e expressão”, ensaio de Ana Maria Machado incluído no livro Silenciosa algazarra. Companhia das Letras, 2011.
Revista Emília, publicação on-line criada e mantida por especialistas e apaixonados pela literatura para crianças e jovens: www.revistaemilia.com.br.
The education of the child, de Ellen Key. Read How You Want, 2006.
“Três maneiras de escrever para crianças”, ensaio de C. S. Lewis incluído no volume único de As crônicas de Nárnia. Martins Fontes, 2009.
Observação: Este texto foi publicado originalmente na revista Ponto, do Sesi-SP, em abril de 2013.
Imagem: Roger Mello.