Várias coisas estão me conduzindo ao tema da “literatura infantil”. Primeiro os celebrados centenários de Andersen e Verne. Depois o fato de ter chegado a mim o livro da espanhola Gemma Lluch, Cómo analizamos relatos infantiles y juveniles (Norma Editorial, Espanha, 2004) – uma bela tese onde disseca não só as produções clássicas do gênero, mas estabelece correlações com a indústria cinematográfica de Disney a George Lucas. Em terceiro lugar, ter ganhado da escritora e mestra Elza de Moura, que foi discípula de Helena Antipoff, uma apostila mimeografada com um histórico texto datado de 1943, escrito por Lourenço Filho – pedagogo que, com Anísio Teixeira e outros, deu novo rumo à educação no país nos anos 30 e 40 do século passado. O estudo se intitula Como aperfeiçoar a literatura infantil e, além da parte histórica e teórica, apresenta uma série de sugestões práticas.
Ah, sim, poderia agregar um quarto motivo para estar matutando sobre esse tema: ter relido o artigo “Literatura infantil”, de Lúcia Miguel Pereira, republicado agora nos dois preciosos volumes da Editora Graphia – edição que recupera a obra de uma das maiores críticas e ensaístas do país.
Quer dizer, motivo não falta para tratar deste tema.
Em todos esses textos reaparece de uma forma ou outra uma questão que continua viva: a distinção entre pretensos livros para crianças e literatura propriamente dita. Existe, sobretudo da parte de incautos, a noção de que literatura infantil é uma coisa muito fácil de fazer. Como todos somos levados a improvisar histórias para filhos e netos, alguns caem na tentação de achar que a historinha que inventaram e que distraiu o pimpolho merece ser escrita e publicada. Pode e deve ser escrita talvez para memória doméstica, mas isto não significa que a obra seja necessariamente literatura.
A rigor, esse equívoco tem sua origem justificada até por razões históricas, pois muitos dos livros que fizeram sucesso entre as crianças e jovens a partir do século XVIII eram narrativas recolhidas da oralidade, como as de Perrault e Grimm. Aliás, a origem de toda literatura é a tradição oral das tribos e culturas primitivas, seja com Homero, com as fábulas sânscritas do Panchatantra ou os contos recolhidos em As mil e uma noites. Mas a fonte oral apenas é o primeiro passo. A literatura enquanto arte é arte da escrita e não uma simples transposição da oralidade.
Lourenço Filho cita Storm, que dizia: “Se você quer se dirigir às crianças não escreva para criança”. E Lúcia Miguel Pereira, por sua vez, afirma: “O erro de muitos livros infantis é serem infantis demais”. E ambos trazem em socorro de suas teses o fato de que grandes clássicos lidos por crianças e jovens não foram escritos para esse público. No entanto, admite Lourenço Filho, existe uma “literatura infantil”, que começou a ser produzida mais sistematicamente a partir do século XVIII. Este tipo de escrita, segundo Basedow (1723-1790), é uma espécie de “filantropismo pedagógico”. No entanto, uma coisa é a literatura, entendida, conforme Lourenço Filho, enquanto “expressão da arte”, e outra coisa é a chamada “literatura didática”.
É nessa linha que Paul Barth, há mais de 60 anos, dizia: “Esta literatura está cheia de disparates e trivialidades. A tendência de fazê-la veículo de formação moral tornou-a, muitas vezes, insossa. Em vez de deixar falar as coisas e os fatos, fala o autor em demasia. Em vez de vida real, aparece, amiúde, a caricatura, em que se exageram os bons e maus caracteres, com tipos extremados, nos dois sentidos – de modo que se recompensa excessivamente o bem e se castiga da mesma forma o mal”.
Voltando à posição de Lourenço Filho, encontramos a declaração de que, além das ideologias de época, “a literatura é uma lição permanente de linguagem”. Daí, dizer algo desnorteante: “Não tem a literatura infantil, portanto, a função direta de ensinar, de instruir, de pregar a moralidade, de levar a conhecer maior vocabulário, ou novas formas de expressão”.
Eis um ponto complexo para análise, sobretudo no contexto brasileiro. Por duas razões: primeira porque no governo anterior, há uns dez anos [o livro foi publicado em 2006], o MEC criou uma estratégia para orientar autores e editores chamada de “temas transversais”. Ou seja, uma série de temas que deveriam ser destacados nas obras quando estudadas (ecologia, cidadania, solidariedade etc.). Isto fez com que editores saíssem à cata de textos que atendessem à bula proposta e motivou autores também a produzirem obras direcionadas para aqueles temas. Isto criou a ideia de que o texto literário é ”instrumental”, que está a serviço de ponderações ideológicas. Não sei se alguma obra-prima surgiu desta grade redutora, mas sei que obras-primas foram submetidas a essa fôrma, e sobreviveram.
Em segundo lugar, existe dentro da tradição brasileira algo neste sentido desde os tempos de Monteiro Lobato. Com Lobato, criou-se uma literatura infantil eminentemente didática, que marcaria outros escritores. Uma literatura pedagógica, para se ensinar matemática, história, geografia, enfim, ensinar matérias do curriculum, parafrásica e didaticamente.
Não estou tirando nenhum mérito de Lobato. Ao contrário, ele é maior do que, em geral, fazem crer os livros de literatura e cultura brasileiras. Ouso dizer que, como figura cultural, tanto como editor, como o “refundador” da literatura infantil didática, quanto por sua atuação política e social, é muito mais importante que muitos dos modernistas tão academicamente reverenciados. E é um paradoxo isto. Correndo fora da raia modernista, ao seu modo, é dos intelectuais que mais influenciaram o Brasil no século XX. Muitos dos mal-entendidos sobre ele provêm do fato de ter aberto baterias contra a pintura de Anita Malfatti – uma pintora que, hoje se reconhece, tem momentos bons e medíocres.
Mas a literatura infantil que ele implantou se insere, em grande parte, naquilo que Lourenço Filho já chamava de “literatura didática”. E isto tem muitas virtudes, mas também algumas limitações.
(Este texto está no livro A cegueira e o saber, da editora Rocco. A sua publicação neste blog foi gentilmente autorizada pelo autor.)
Imagem: Anna Walker.