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Franz e Georges ou dois grãos de milho

Há um lugar na literatura em que os grandes viram grãos de milho. Aqueles altos sobrenomes de lombada dão lugar à miúda letra manuscrita. É quando Kafka escreve para o pai e se torna Franz, o filho de Hermann. É quando Simenon escreve para a mãe e se torna Georges, o filho de Henriette.
Um pai e uma mãe, diz Simenon, “são dois indivíduos cujos gestos, cujas palavras, cujos olhares são julgados impiedosamente”: há na casa uma criança que os observa. Kafka é essa criança impiedosa quando escreve para o pai. Já um homem, mas um verme aos pés do poderoso Hermann. Tem 36 anos, uma vida de autonomia incerta pela frente e páginas de explicações para o seu passado de fracassos como primogênito.
Simenon, quando escreve para a mãe, tem praticamente o dobro da idade do menino Franz e uma história de pequenas mágoas resfriadas pelo tempo. Tornou-se pai, deixou de ser impiedoso. Quando olha nos olhos cinzentos da velha Henriette, no hospital de Bavière, quando vê o nonagenário traço irônico nos lábios dela, não está pensando num acerto de contas, já passou disso. O menino Georges só quer tentar entender. Não vê problema se sua desconfiança é traída, por exemplo, quando descobre que aquela personagem do seu livro Pedigree, aquela Élise maldosamente inspirada na mãe, em vez de tê-la ofendido, chegou a ser adotada pela própria, que começou a assinar suas cartas como Élise em vez de Henriette, sabe lá se por orgulho ou ironia. O menino Franz, ao contrário, sente um quase prazer comprobatório sempre que chega com um novo livro para o pai, e o pai, mais uma vez, o desdenha.
Um filho está bem aquecido para a luta, o verbo na ponta da língua, o outro filho está apaziguado, levemente comovido, aberto para amar, se o amor for possível. Um toma de assalto o lugar do pai, imaginando as palavras de uma réplica, o outro faz do silêncio entre filho e mãe uma ponte delicada para um delicado entendimento. Um com suas feridas quentes, o outro a afagar suas cicatrizes. Um filho adversário do pai, pelo muito que deduz do que o pai pensa sobre ele, outro filho um estranho para a mãe, pelo pouco que sabe do que a mãe sente por ele.
Georges quer conhecer a menina que foi Henriette Brüll, a que morava numa rua pobre de Liège, a mais nova entre os irmãos. Ele vai juntando pedaços da vida da mãe antes de ser mãe, a menina que não falava francês, a moça de luto (por quem?) numa foto do grande álbum de couro verde da família, a que viu os irmãos se dispersarem, a jovem vendedora de um armazém, a Henriette de olhar desconfiado, aquela que também foi sempre uma estranha para o clã Simenon. Então os pedaços da vida da mãe depois de ser mãe, as crises nervosas nas tardes de domingo, o trabalho duro, o luto pelo marido, o segundo casamento, a segunda viuvez, a orgulhosa solidão de sobrevivente. O menino Georges quer tocar a alma da mãe.
Franz também volta no tempo, procura por um garoto judeu de uma comunidade no campo, procura pelo garoto Hermann antes da vida na cidade. Não é que Franz queira chegar mais perto da alma do pai, o que ele quer é remontar à pré-história do homem que o esmagou, o homem que o encheu de culpa. O que ele quer é surtir um efeito com sua carta, mostrar onde começam as sequelas de uma educação, a vergonha de um Josef K. Ao contrário de Georges, escritor famoso e viajado, casado e sem dramas financeiros, Franz vive à sombra de um sobrenome que acha que ainda não fez por merecer. Franz vive à sombra de um sobrenome que tem o peso de um desafio.
Nem a carta para o pai de Kafka nem a carta para a mãe de Simenon chegaram a ser enviadas. Foram como que para a posta-restante e dali para o mundo dos livros, entre altos sobrenomes de lombada. Seus autores, não importa o quanto tenham feito, quão bem-sucedidos já tenham sido, aos olhos de um pai ou de uma mãe, continuam a ser filhos, simplesmente filhos. Homens feitos, grandes escritores, mas pequeninos, como todos os filhos.

Imagem: instalação de Chiharu Shiota.