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Filho de peixe

Quem inventou o ditado “Filho de peixe peixinho é” esqueceu de completar: “mas pro peixinho o mar é mais bravo”.
Tem um caso que hoje me faz rir, mas na época me deu foi dor de cabeça. Era 1995, eu já tinha uns dez livros publicados. Fui convidado pra visitar uma escola de BH onde a meninada tinha lido um dos meus livros. No início correu tudo bem. O problema é que entrou na sala a diretora da escola e disparou a falar, insistindo que a minha mãe era uma grande escritora, que eu tinha me inspirado nos livros dela, etc. Desconfio que a diretora não acreditou muito que eu tinha mesmo escrito aqueles livros.
Talvez ela tenha achado que eu era uma espécie de ghost writer da professora doutora Maria Antonieta Cunha? Vai ver achou que a minha mãe, apesar de ter publicado vários livros teóricos e didáticos, tinha algum pudor de escrever textos literários e então teria escalado o filho, o tal moleque Leo Cunha, pra assinar os livros…
Bem, é inegável que minha mãe foi uma grande inspiradora e motivadora da minha trajetória literária. Na minha infância, a biblioteca da minha mãe tinha mais de 10 mil livros, muitos deles de literatura infantil e juvenil. Além disso, minha mãe era professora da disciplina Literatura Infantil na UFMG.
Uma das lembranças mais fantásticas que eu tenho da infância, pré-adolescência, foi um dia em que eu acordei e tinha um caminhão enorme despejando milhares e milhares de livros no hall de entrada da minha casa. Minha mãe estava promovendo uma campanha de doação de livros e quadrinhos para distribuir nas creches. O caminhão passou recolhendo e derramou tudo na minha sala. Eu passei uma semana com uma piscina de livros dentro de casa. Nadando em livros e revistas. Depois os livros foram sendo distribuídos, a piscina foi esvaziando, esvaziando, até que secou. Mas eu fiquei encharcado pra sempre com aqueles livros! Filho de peixe.
Um tempo depois, minha mãe fundou a Miguilim, que se autointitulava Casa de Leitura e Livraria. Como filho da dona, eu me sentia no direito de ficar atrás do balcão vendendo livros e, mais que isso, indicar obras pra todo mundo que entrava: crianças, adolescentes, pais, avós, professores.
E juro que eu era um ótimo indicador de livros, pois lia todos os títulos da livraria. Aventura, suspense, comédia, policial, terror, ficção científica, memórias… Tudo o que as editoras lançavam.
Eu tive a felicidade de conhecer aquilo tudo. A minha geração teve essa particularidade: foi a primeira que já tinha, na infância e na adolescência, uma vasta produção de literatura infantil e juvenil. Livros escritos, ou pelo menos editados, para esse público.
E também fui muito ao teatro, especialmente nas férias, que eram sempre no Rio. Toda ida ao Rio incluía obrigatoriamente uma peça no Tablado. Assisti às montagens dirigidas pela própria Maria Clara Machado, do Pluft, O rapto das cebolinhas, Tribobó City, várias. Peças escritas e montadas para o público infantil, e com ótima qualidade. Tanto que os adultos também morriam de rir e de chorar.
O resultado dessa formação tão cheia de histórias, nos livros e no teatro, é que eu logo descobri que existem obras boas, médias e ótimas em cada um dos gêneros, cada um dos estilos, e também na mistura deles. Quando comecei a escrever, anos depois, foi inevitável que os meus textos refletissem essa salada toda. Talvez por isso meus livros sejam tão diferentes uns dos outros. Livro engraçado, livro triste, ousado, tradicional, poesia, prosa poética, prosa solta, teatro, crônica…
Talvez por isso aquela diretora lá de BH tenha me olhado com tanta desconfiança…

Imagem: A ilustração (detalhe) é de Rafael Antón e está no livro Dedé e os tubarões, que foi publicado pela editora Brinque-Book. Vários poemas e histórias de Leo Cunha buscaram inspiração em frases ou ideias do seu filho Dedé, que também é filho de peixe. É o caso desse livro, no qual uma brincadeira com o tablet é o ponto de partida para uma aventura perigosa, mas divertida.