Blog

De alunos e de almas

O diálogo Crátilo, de Platão, escrito no século IV a. C., é considerado o primeiro texto da história ocidental a se debruçar sobre o fenômeno da linguagem humana. É uma leitura obrigatória para todos os estudiosos da linguagem e da filosofia. E entre as muitas coisas debatidas nesse diálogo, a que mais espaço ocupa no texto é a da origem dos nomes, ou seja, a etimologia. Os personagens que dialogam entre si apresentam hipóteses sobre as prováveis etimologias de muitas palavras da língua grega, hipóteses todas elas fantasiosas e que fazem rir os linguistas profissionais de hoje em dia. Mas as especulações filosóficas que sustentam o diálogo são fundamentais para se compreender o sistema de pensamento platônico, que exerce poderosa influência na cultura dita ocidental até hoje. O conceito de “realidade virtual” que usamos agora, por exemplo, é herdeiro direto da noção de “mundo das ideias” de Platão, um universo fora do alcance dos nossos sentidos corporais e acessível apenas pelo exercício da mente. A base filosófica da teologia cristã também deve muito ao platonismo.
Como se vê, a origem das palavras é um tema que atrai as pessoas faz muito tempo. E, claro, uma das principais curiosidades está no significado dos nomes próprios. O que será que quer dizer João, Maria, Jennifer ou Hermenegildo? É muito legal saber que Filipe é o “amigo dos cavalos” (em grego), que Artur é “urso” (em celta) ou que Leila é “noite” (em árabe). E é com surpresa que descobrimos que Jesus, Josué e Josias são formas diferentes de um mesmo nome hebraico que significa “Deus salva”.
Se as etimologias no Crátilo eram fantasiosas, fantasiosas também são muitas das etimologias que circulam entre as pessoas que, mesmo bem letradas, não se preocupam em verificar se aquelas supostas explicações são válidas ou não. E a campeã das etimologias falsas é a que diz que a palavra aluno procede do latim alumnus, que significaria “sem luz”, formada de a-, que quer dizer “sem” (como em acéfalo, “sem cabeça”), e de lumnus, “luz”. E, pior, que não deveríamos usar essa palavra para designar os aprendizes porque ela seria, então, “politicamente incorreta”.
A coisa já começa mal, porque o a- que significa “sem” não é latino, é grego e recebe nos estudos linguísticos o pomposo nome de “alfa privativo”. Depois, porque, em latim, o radical das palavras ligadas à luz é lumin-, com um i bem pronunciado, como em iluminar, luminoso e até em alumiar, que perdeu seu -n-, mas não perdeu seu brilhante -i-.
Se alumnus não é o “sem luz”, o que é então? Muito simples: em latim existia o verbo álere, em que encontramos uma raiz al­- mais a terminação própria dos infinitivos verbais –ere. Essa raiz al­- tinha o sentido geral de “nutrir, alimentar”, e está presente no próprio verbo alimentar. O alumnu é aquele que está sendo alimentado, nutrido, é a criança de colo que ainda mama. Daí, metaforicamente, passou a designar aquele que é nutrido com conhecimento, uma imagem mais bonita (eu acho), até porque mais positiva, do que a da tal falta de luz…
O particípio passado do verbo álere era altus (o particípio passado, para quem não se lembra, são as formas terminadas em -ado/-ido como passado, terminada, amado, partido, vendida etc.). Se você acha que altus tem alguma coisa que ver com alto, pois achou certo. O altus (feminino: alta) é precisamente aquela pessoa ou coisa que, por ter sido bem nutrida, bem alimentada, pôde crescer e ficar… alta. Aposto que você nunca pensou que aluno e alto eram palavras da mesma família. Pois são. E a coisa não para por aí. E, além de não parar, se complica. Lá vamos nós…
Em latim, quando um radical que começava por a- recebia um prefixo, esse a- sofria uma mutação sonora e podia se transformar em e-, i- e mesmo em u-. Esse fenômeno se chama apofonia, mas você não precisa saber disso. Pois o nosso altus, ao receber o prefixo ad- (o mesmo que existe em admitir, administrar, advertir etc.), ganhava um lindo -u-, de modo que ad- + altus = adultus. Sim, a nossa palavra adulto, por menos que pareça, também é da família de aluno, alimentar e alto. E, claro, o adulto é aquele que foi tão bem alimentado que chegou à plena idade madura.
Que tal avançar mais um pouquinho? Quando queremos indicar uma ação que está em processo, usamos os sufixos -ecer ou -escer, como em amanhecer, envelhecer, rejuvenescer etc. Isso também é uma herança direta do latim, que usava -éscere para a mesma finalidade. Então, com o radical adul- (presente em adultus) mais a terminação -escere, havia em latim o verbo adoléscere, em que o -u- se arredondou em -o-. Desse verbo adoléscere é que vem a nossa palavra adolescente, que, mais uma vez, tem relação com o verbo álere, “nutrir, alimentar”. O adolescente é aquele que está sendo nutrido, que ainda está em formação, que em breve vai se tornar um adultus… (Se você tiver algum livro que diga que adolescente tem relação com adoecer, pode jogar no lixo reciclável, pois é mentira pura!)
Retomando: temos aí uma família de palavras formada por alimento, aluno, alto, adulto e adolescente. Em todas elas está, bem lá no fundo, a ideia de “nutrir, alimentar”. Mas essa ideia, é claro, se perdeu com o passar do tempo, de modo que hoje cada uma delas é tratada como um item isolado, porque afinal não falamos latim e não temos como reconhecer em todas essas palavras o verbo álere, que não sobreviveu em português nem nas outras línguas aparentadas.
Qual é a conclusão dessa história toda? Simplesmente que a etimologia é uma disciplina científica que exige um profundo conhecimento de história das línguas, de fonética histórica (isto é, das mudanças dos sons das línguas ao longo do tempo), de latim (e de grego, árabe, tupi, banto e das outras diversas línguas que deram sua contribuição ao português) e que, mesmo para o especialista, costuma levantar muitos problemas e dúvidas. Basta ver nos dicionários: volta e meia, quando vamos consultar a etimologia de uma palavra, o que encontramos (para nossa grande decepção) é “etimologia obscura” ou “etimologia duvidosa”. Isso porque o estudioso sério não se arrisca a fantasiar sobre a origem das palavras: se nenhuma fonte histórica confiável explica de onde veio aquele termo, a atitude científica correta é lançar hipóteses, tentar comprová-las e, não podendo chegar a nenhuma conclusão definitiva, deixar a coisa em suspenso até que se obtenha um conhecimento seguro.
Para terminar: a universidade onde uma pessoa fez a sua formação é chamada tradicionalmente de alma mater. Esse alma significa – lá vamos nós de novo – “alimentadora, nutridora”. A universidade é, portanto, a “mãe nutridora” de seus… alunos!
Essa alma que aparece aí nada tem que ver com a alma no sentido de “espírito”, em oposição a corpo (como em “de corpo e alma”). A nossa alma vem do latim ánima… mas essa já é outra história! Aliás, a discussão sobre a origem das palavras corpo e alma está lá, no Crátilo, com todo o encanto que os diálogos de Platão conservam há 2.500 anos.

Imagem: Robert Doisneau.