Minha mesa de trabalho é a oficina do Ão, do Cujo, do Sem Nome. Papéis de todos os formatos, em blocos ou avulsos. Textos fotocopiados e encadernados com capas de muitas cores, espirais, grampos e prendedores. Livros impressos – alguns bem mal-impressos – de diferentes espessuras, de formatos os mais estapafúrdios – muito grandes, diminutos, redondos, com ou sem vazados, em tecido e plástico… Por dentro, ilustrações que vão do desenho medíocre ao regular, do figurativo ao geométrico, de Da Vinci a Romero Britto. Enfim, a mixórdia habitual da mesa de um editor de literatura para crianças.
Esqueci de incluir a pasta de correspondências. Sim, com cartas em papel, algumas até manuscritas! Nela, também a imensa variedade das escolhas humanas. Cores diferentes, tintas e fontes diversas, com ou sem logos e monogramas, stickers, adesivos, etiquetas, com ou sem ilustrações, cartões de visita… Uma delas trouxe até mesmo a foto do remetente, e outra uma flor seca colada em papel perfumado.
Enfim, minha mesa é a oficina do Ão, do Cujo, do Sem Nome. Não pelo que contém, mas pelo que o material me obriga a fazer: destruir, ignorar, renegar, recusar, mandar procurar outra turma. Os raros sins implicam ainda muito trabalho: sugestão de correções, alterações, novos títulos, cortes na abundância de adjetivos, na sobra de preposições, na obesidade dos verbos. E a pontuação! É tanto erro que repasso a tarefa ao revisor, paciente, minucioso e calado.
Eu poderia responder às cartas que me pedem edição de originais com respostas-padrão. Lamento, mas nosso catálogo está completo para este ano. Lamento, mas seu original não atende a linha editorial. Lamento que, apesar da qualidade de seu material, não tenhamos interesse em publicá-lo. E assim por diante.
Poderia fazer assim. O capeta, porém, mora em mim. Respondo individualmente e em consonância com as mensagens enviadas. E não dou ponto sem nó. Explico-me melhor. Suponhamos que receba um original, cujo autor me escreve um pedido nos seguintes termos:
Senhor Editor [muitas cartas começam assim, no masculino predominante e em maiúsculas para afirmar minha autoridade e meu poder, penso eu],
Em anexo envio um original de minha autoria, dirigido ao público infantil. Sei que sua renomada editora [o “renomada” faz parte do puxa-saquismo nacional!] busca novos autores e, por isso, tomei a liberdade de enviar-lhe meu original. É uma história de amizade, fraternidade, solidariedade e devotamento [ufa, ainda bem que me poupou de mais um -ade!] entre dois animais: um urso e uma arara [ops, se encontraram onde? em um zoológico multiambiental, tipo do gelo aos trópicos?] que representam um adulto e uma criança [é evidente que o urso não é quem representa a criança!], capazes de interagir e se compreender, anunciando no final feliz a possibilidade de um futuro melhor para a humanidade!!! [devo comentar na resposta essa missão impossível? ainda mais com três exclamações?] Aguardo uma resposta afirmativa [por que os autores veem o mundo editorial como a Grande Mãe ou o Asilo dos Escritores?] e desejo-lhe uma boa leitura [meu Hades, já imagino o que ela imagina ser uma boa leitura!].
Atenciosamente,
Maria Fernanda, a Esperançosa [corações, beijinhos e flores em stickers de gosto duvidoso…]
Resposta do editor (no caso, eu, mulher):
Prezada senhora Maria Fernanda [a ironia do adjetivo serve como anestesia para a cirúrgica amputação que segue],
Em resposta à sua elegante cartinha [mais hipocrisia], comunico-lhe que o mundo cor-de-rosa de seu urso e de sua arara não tem igual no Universo. Ocorre que esta editora tem uma linha de publicações que considera os leitores-crianças seres inteligentes e não criaturas dóceis que engolem qualquer historinha insossa e previsível, como a sua.
Cordialmente [mais hipocrisia],
Mariana Miranda Guerra
Aqui, da mesa do Ão, em março de 2018.
Admito: a minha editora tem um catálogo reduzido. O trabalho, porém, jorra inesgotável de minha mesa. Estes olhos míopes tendem a fechar-se na altura do primeiro terço dos originais. Aos poucos, um sufocante nó na garganta. É o sinal inequívoco para interromper a leitura, porque os neurônios se movem adoidados e em revolta. Meus Campos Elíseos! Por que autores de livros para crianças se parecem a Torquemadas, prontos a jogar em fogueiras os indefesos pequenos leitores pelo crime de querer arte e não sermões? Literatura e não exercícios narrativos autoritários, ensopados no mel das boas intenções? Se as crianças que esses escritores concebem são o futuro deste país, pobre Brasil!
No entanto, como boa capeta, sou uma editora de princípios. Somente entra no catálogo o texto que ocupar um espaço de contestação. Não sou Sem Nome à toa. Não me dobro a mistificações sob o manto subversivo da literatura. Uau, esta frase ficou retumbante! Vai para a legenda do logotipo da editora. Acompanhada de uma vibrante chama vermelha. Ops, estereótipo não!
Uma ideia melhor clareia a intenção. No logo, a imagem estilizada de minha mesa editorial e um latim caprichado para criar uma aura de distinção: Ipsa littera potestas est.
Desperto da derrapagem.
Num canto da estante, poucos originais à espera de uma segunda leitura. Ao lado da mesa, uma fragmentadora de papéis.