Ao iniciarmos este texto sobre o longo trajeto das imagens narrativas em nossos livros para crianças e jovens, temos que excluir, antes de tudo, mas sem ignorá-los, os traumas de um passado colonial, que dão margem às depreciadoras comparações tão comuns, como ao se dizer que, enquanto na Inglaterra, em 1789, William Blake publicava o livro Canções da inocência, uma obra referencial no que tange à relação entre palavra e imagem, nós amargávamos na época, diferentemente das colônias hispânicas, a proibição do uso da impressão tipográfica. É verdade que esse entrave cultural se prolongou por três séculos, por todo o período colonial que antecedeu a chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808. E foi justamente em maio desse ano que o príncipe regente, Dom João VI, inaugurou a Imprensa Régia e a Livraria Pública.
Não podemos deixar de mencionar a grande transformação ocorrida no país a partir daquele momento. Observaram-se, então, profundas mudanças na economia, no ambiente político e social, no urbanismo, na arquitetura, inclusive no ensino da arte de tão grande ligação com nosso tema: ilustração de livros.
Avançando um pouco em nossa história colonial, é comum também ouvir dizer que a falta de uma cultura imaginista no Brasil durante o Segundo Reinado, por exemplo, seria um fator inibidor da difusão da imagem narrativa e, consequentemente, uma causa da ausência de livros ilustrados para crianças, ao contrário do que já acontecia na Europa. Nesse aspecto, várias questões precisam ser consideradas.
As relações entre a gravura e a ilustração de livros
Não podemos dissociar a história da gravura no século XIX – seja sobre madeira, metal ou pedra litográfica – da história da ilustração de livros. Naquele período, a gravura entre nós destinava-se a fins utilitários da reprodução, e nunca de autoexpressão, como já há muito era praticada na Europa. No Brasil ela era exercida basicamente por artífices, artesãos habilidosos na reprodução de imagens, e utilizada em avisos comerciais e assuntos prosaicos e cotidianos. Para suprir aqui a demanda dessa mão de obra especializada, foi criado, em 1856, o Liceu de Artes e Ofícios, destinado, além de outros cursos, a formar profissionais unicamente gravadores de imagens. Esse é um fato de nossa história da imagem impressa extremamente louvável e importante, não obstante seja completamente fora do perfil do que estamos aqui discorrendo.
A Academia Imperial de Belas Artes, a gravura e a ilustração
Ao refletirmos sobre as origens e os antigos impasses da ilustração de livros para crianças e jovens em nosso país, é oportuno lembrar que a Academia Imperial de Belas Artes – fundada em 1826 e originária da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, criada em agosto de 1816 – já possuía em seu currículo o ensino da gravura. Contudo, não podemos ignorar que sempre houve um inegável olhar excludente e elitista por parte da Academia quanto à gravura, vista como linguagem menor. E esse fato nos leva à inevitável ilação com as questões da ilustração de livros. Tanto assim que, somente em meados do século XX, o ensino da gravura na Escola Nacional de Belas Artes assumiu o nível de expressão artística. Essa significativa mudança deveu-se à presença e à atuação de professores como Raimundo Cela, inicialmente, e, mais tarde, Oswaldo Goeldi.
Para a ilustração brasileira de livros, o que esse fato simbolizou? Veremos que esse triângulo conflituoso entre pintura, gravura e ilustração permeou a metade do século XX. Na verdade, as ilustrações de livros, principalmente as direcionadas ao público infantojuvenil, eram produzidas por profissionais atuantes em outras áreas, como a caricatura, a charge, os desenhos de humor, etc.
Para grandes artistas como Belmonte, J. U. Campos, Voltolino e André LeBlanc – para citar apenas os ilustradores de Monteiro Lobato –, a atuação como ilustrador era uma atividade circunstancial. Mesmo quando artistas plásticos da projeção de Di Cavalcanti ou Santa Rosa ilustravam, era um trabalho adicional, refletindo nos livros uma sequência, uma adaptação do tipo de pintura que faziam na época.
Essa era uma realidade que teve suas origens ainda em meados do século XIX. E é para lá que vamos para entender os motivos do não surgimento no país de um ilustrador dedicado unicamente ao livro.
A questão social e a ilustração de livros
Na segunda metade do século XIX, o livro para crianças na Europa, notadamente na Inglaterra, do ponto de vista econômico, foi uma consequência da Revolução Industrial. À época, no Brasil, vivíamos uma economia essencialmente agrária e pastoril, alicerçada na mão de obra escrava. Portanto, são momentos históricos distintos que não podem ser comparados, principalmente pelos arautos de um complexo atávico de inferioridade que infelizmente até hoje proliferam em seu “beija-mão cultural”.
Na Inglaterra da rainha Vitória e de seu sucessor, o rei Eduardo VII, surgiu uma nova realidade social e cultural. Eram os trabalhadores livres e assalariados, fato socialmente inédito até então, além do surgimento e da consolidação de uma classe média que exigia para seus filhos um novo tipo de saber e lazer. Conceitualmente, a criança deixara de ser vista e representada como um adulto em tamanho pequeno.
Não podemos ignorar que, àquela época, a produção e a popularização do livro para crianças foram alicerçadas basicamente no grande desenvolvimento dos processos de captura e de reprodução da imagem, que passaram a exigir novos gravadores e ilustradores. Seria uma visão muito simplista associar o surgimento do livro para crianças e jovens em nosso país e, consequentemente, a ilustração como um fenômeno unicamente resultante do processo de nossa industrialização. Mesmo assim, é sempre necessário enfatizar que em um país agrário e escravagista era impossível o surgimento de uma classe média.
Esses motivos sociais, econômicos e políticos explicam, em parte, a grande ausência da ilustração nos livros para crianças, afora os que chegavam do exterior, fato que veio a ocorrer com mais frequência no terço final do século XIX. Todavia, a questão crucial da falta de uma classe média que exigisse escolas e produtos culturais melhores, entre os quais o livro, continuaria sendo um impasse. Mesmo considerando a Revolução de 1930 de Getúlio Vargas e toda a industrialização dela decorrente, os bens culturais continuavam distantes da grande maioria das pessoas.
A cultura da imagem como soberania nacional e a memória individual e coletiva
Walter Crane, grande ilustrador e gravador inglês, publicou em 1874 uma obra-prima de álbum ilustrado. Refiro-me ao A Bela e a Fera, que excita reiteradamente as sibilas do fracasso, invocando o “fantasma fatal” de nosso passado e de nossa colonização como causas da inexistência entre nós de uma cultura da imagem e do livro.
Entretanto, revendo nossa história, encontramos ainda no Segundo Império um fenômeno muito instigante sobre a cultura da imagem, com reflexos até hoje. No período entre 1841 e 1864, o Brasil iniciou um esforço gigantesco de disseminação da imagem impressa do jovem imperador Dom Pedro II em todos os recantos do país. E utilizou para tal intento os vastos recursos da litografia, principalmente. Naquela época, poucos países na América utilizaram tanto a imagem na afirmação de uma unidade nacional, bem como na consolidação de todo o vasto império, como o Brasil a utilizou. Essa cultura da imagem atingiu seu ponto máximo na Guerra do Paraguai – o império também atingiria aí seu apogeu e o início de seu declínio. Mas isso é outra história.
No entanto, até nossos dias todo o imaginário monárquico que o brasileiro possui advém principalmente dessas imagens. Esse fato nos coloca diante de um dado concreto: a ilustração de livros para crianças – pelas próprias características de seus leitores – constrói o imaginário de cada um e o próprio imaginário de um país. Em suma: a nacionalidade se fomenta em imagens também.
Os pequenos e primorosos bicos de pena feitos por Renato Silva para o livro Cazuza, de Viriato Corrêa, construíram por gerações a imagem longínqua e idílica do Brasil rural. Uma saudade precoce de um país em que a população em pouco tempo passou a morar nas grandes cidades, ao lado da crescente industrialização e dos problemas dela decorrentes.
O mesmo fenômeno vamos encontrar nas ilustrações de Oswaldo Storni para o livro Os segredos de Taquarapoca, de Francisco Marins, ou para Três garotos em férias no Rio Paraná, de Francisco de Barros Júnior. A imagem romântica e panteísta do Brasil rural – sua visão venturosa e aventurosa – cristalizou-se na memória afetiva de gerações de leitores.
Quando um jovem imperador usa sua imagem física e gráfica com o intuito de obter a unidade nacional – enquanto as nações vizinhas se fragmentavam – e estende sua autoridade de um chefe de Estado a um império imenso, não há dúvidas de que estamos diante de um fenômeno do imaginário social que merece ser estudado.
O mesmo acontece quando pensamos nas singelas e eternas ilustrações de Renato Silva e Oswaldo Storni e, inevitavelmente, ficamos diante dos desígnios da imagem. Até onde elas vão? Simbolicamente, o que representam na formação das pessoas as ilustrações de livros infantis e juvenis?
Esses três exemplos, historicamente distantes, nos trazem a resposta: eles mostram que a imagem tem sua vida real além de si mesma. Ela perpetua-se individual e coletivamente em torno de uma matriz ao mesmo tempo pessoal e nacional, temporal e atemporal. Complementando, com toda a reverência, a frase de Lobato: um país se forma com homens, livros e imagens. Estas últimas, as imagens, no sentido mais amplo da palavra.
O livro e a ilustração como objeto de arte e indústria
Existe um pensamento purista de que os problemas da ilustração brasileira se originam em problemas estéticas e, até mesmo, de formação do ilustrador. Isso é inquestionável. Mas é muito pouco. Temos que admitir que a dedicação do ilustrador a seu trabalho, do ponto de vista técnico e cultural, está intimamente ligada à sua profissionalização, que está, por sua vez, atrelada à continuidade de seu trabalho e ao retorno financeiro.
É inegável – afora as questões político-partidárias, que neste momento não interessam em nossa análise – que as gigantescas compras governamentais, nos âmbitos federal, estadual e municipal, tornaram o livro brasileiro, didático ou não, literário ou não, uma realidade, um produto industrial. Temos consciência de que a palavra “produto” causa pudor e constrangimento em muitos. Mas a transformação e a qualidade física que essa realidade e viabilidade econômica trouxeram ao objeto livro são fatos totalmente irrefutáveis. O que está sendo enfocado agora é apenas o livro como objeto físico – a qualidade estética da ilustração ou do texto, neste momento, não está em pauta.
As questões culturais do livro e da ilustração também passam por um grande problema do brasileiro, que felizmente se dissipa: a autoestima. Por exemplo: é conveniente e esclarecedor dizer que, após o funesto período da ditadura militar, esse abismo social, aludido em muitos momentos deste texto, vem sendo gradualmente resolvido, apesar das lacunas e dos desafios. Isso é um dado estatístico.
Novos contingentes sociais vêm sendo incorporados às riquezas produtivas do país e, consequentemente, ao livro e à leitura. Essas conquistas econômicas não são separadas das demandas espirituais e educacionais e até mesmo do simples prazer de se fruir uma bela ilustração.
A ilustração de livros e os anos 1960
Voltando ao século passado, especialmente aos anos 1960, o Brasil iniciava um novo ciclo industrial naquela época. Entre tantas mudanças e demandas, uma nova inteligência visual surgiu para racionalizar e, em suma, tornar nossos produtos industriais mais funcionais e atraentes. Ao lado disso, surgiu a necessidade de mercado de se criar uma boa imagem gráfica de empresas, na forma de folhetos, cartazes, projetos editoriais, sinalizações, logotipos e livros; enfim, uma inédita relação se estabeleceu entre os criadores visuais e a produção industrial e cultural do país. Qual a importância que esse fato tem a ver com a ilustração de livros para crianças e jovens no Brasil?
Nessa década, escolas e cursos de design gráfico foram criados no país. Na então Escola Nacional de Belas Artes, durante o período em que o professor Flexa Ribeiro foi diretor – no final dos anos 1940 até 1952 –, foi criado o curso de Artes Decorativas e Industriais, embrião do que seria mais tarde o curso de Artes Gráficas, que resultou no atual curso de Comunicação Visual Design e em seu desdobramento: o curso de Desenho Industrial, no início dos anos 1970, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Uma das escolas, símbolo dessa cultura visual para os novos tempos industriais, foi a ESDI – Escola Superior de Desenho Industrial, inaugurada em 1963 e mais tarde anexada à Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Sendo o livro um dos mais espirituais e simbólicos objetos da cultura de um país, para atender suas propriedades artísticas e técnicas, uma geração de designers gráficos e ilustradores surgiu, oriunda dessas escolas.
Suas referências estéticas eram completamente diferentes. Elas aproximaram-se das novas linguagens da forma, como o surrealismo, o construtivismo russo, o expressionismo, o De Stijl, o novo cartaz de pós-guerra e do leste europeu e, sem esquecer, a célula mater, de onde essas novas escolas de design se originaram: a Bauhaus e sua sucessora, a Escola de Ulm, na Alemanha.
Alguns grafistas influenciaram sobremaneira essa nova figuração da ilustração de livros para crianças. Citaria apenas um, pois seu estilo é um amálgama das tendências da arte contemporânea e sua influência se espraiou em diversas linguagens, desde o cartum à ilustração: Saul Steinberg.
O design e a ilustração
É na concepção da página do livro, em sua estrutura de espaço cheio e vazio, e na simplificação do grafismo das ilustrações que esse novo gênero se afastou, até mesmo se contrapôs, como aos pintores que ilustravam na passagem do século XIX para o XX. Eram artistas que tinham a pintura como referência de suas ilustrações. Com essas características, podemos citar Rodolfo Amoedo, Henrique Bernardelli e Eliseu Visconti – este último um precursor do design brasileiro.
Essas diferenças estendem-se aos ilustradores das primeiras décadas do século XX. Grandes nomes como Julião Machado, K. Lixto e Raul Pederneiras, que infelizmente, para malogro nosso, não tiveram a oportunidade de ilustrar livros infantis. Todos tinham em suas ilustrações uma identificação muito próxima à caricatura e à charge.
Em síntese, o design nos anos 1960 mudou a estética e o modo de pensar da ilustração brasileira de livros para crianças e jovens.
A ilustração de livros e o papel das instituições
Diante dessa realidade, não foi por mera coincidência que nos anos logo subsequentes a esse período algumas entidades foram criadas, governamentais ou não, iniciativas que passaram a se interessar pelo livro e, principalmente, pelo implemento e apoio à ilustração e ao ilustrador de livros para crianças e jovens. A imagem dos livros é um ato de cultura e educação, é o primeiro contato das crianças com as artes plásticas; logo, ela não poderia ficar excluída de qualquer entidade preocupada em promovê-la e estudá-la.
No início dos anos 1970, o escritor Walmir Ayala atuava como assessor cultural do Instituto Nacional do Livro (INL) na gestão da também escritora Maria Alice Barroso. Em depoimento escrito, Walmir revelou que na época foi estabelecido que em todas as reedições feitas pelo INL, no campo da literatura infantojuvenil, só seriam beneficiados escritores e ilustradores nacionais, procurando assim terminar um longo período de importação de livros, que infelizmente em nossos tempos voltam a ressurgir.
No que se refere ao incremento da produção e à pesquisa sobre livros infantis e juvenis, além do apoio ao escritor e à valorização do papel do ilustrador – afora o estímulo à criação de redes de bibliotecas –, esses objetivos hoje estão concentrados em uma fundação de direito privado fundada em 23 de maio de 1968. Estou me referindo à Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, seção brasileira do International Board on Book for Young People (IBBY) – órgão que tem como finalidade promover o livro para crianças e jovens em todo o mundo.
Atendo-me unicamente às questões da ilustração de livros, a presença e a atuação da FNLIJ são divisores de águas. Contam-se inúmeros os eventos promovidos pela Fundação em mais de 50 anos de existência, no sentido de promover, por meio de seminários, exposições, palestras e cursos, a valorização e o estudo da arte de ilustrar livros.
A profissionalização do ilustrador de livros
É a partir dos anos 1970 e 1980 que, pela primeira vez, a profissionalização e o surgimento de ilustradores dedicados unicamente à ilustração de livros passaram a acontecer. Vale lembrar que o Brasil possui atualmente a oitava indústria de livros do mundo. Ante a grande demanda de designers, capistas, diretores de arte e ilustradores, não há mais espaço para o diletantismo, tampouco o exercício do ofício de ilustrar como uma atividade adicional e ocasional.
Não temos dúvida de que a história e o desenvolvimento da arte de ilustrar, no que se refere ao aspecto técnico, formal e conceitual, estiveram sempre associados às questões tecnológicas e industriais. No Brasil não foi diferente. Não se trata de uma visão automática ou fatalista. É simplesmente uma constatação. A arte de ilustrar livros passou pela xilogravura, gravura em metal, litografia, cromolitografia, offset e atualmente impressão digital, portanto várias etapas ligadas à tecnologia de época.
A revolução digital e a ilustração de livros infantis e juvenis
Desde o final dos anos 1980 e, principalmente, ao longo dos anos 1990, operou em nosso país, bem como em todo o mundo, a mais radical, a mais profunda transformação em toda a história da indústria gráfica: a impressão e a captura de imagens por processos digitais.
O registro da imagem por scanner de alta definição, a utilização dos sempre renovados softwares na criação gráfica e, naturalmente, na criação de ilustrações, imagens diversas e projetos editoriais e, finalmente, o transporte direto dessas imagens e tipografias para a chapa de impressão, eliminando o fotolito, todos esses aspectos representaram uma revolução conceitual e industrial sem precedentes.
A ilustração de livros infantis e juvenis pelo processo digital, bem como a própria arte digital, exigiu novas reflexões estéticas. Sem dúvida, muito mais intensas do que as ocorridas quando os ilustradores, afastando-se da arte acadêmica do final do século XIX, passaram a orientar seus trabalhos em direção aos estilos contemporâneos de arte, fato agravado ainda por algo até então inusitado: a ausência física de uma ilustração original. O mito, o fetiche do original passou a existir virtualmente.
Embora ainda em seu início, e diante de um futuro absolutamente imprevisível, podemos anunciar alguns impasses quanto a essa nova realidade, a começar pela própria essência do aprendizado do ofício do ilustrador, em que a ausência da tradicional habilidade manual para desenhar e pintar não representa mais tanto empecilho para um bom criador digital. Frequentemente vemos a utilização por parte dos ilustradores – e isso é um fenômeno internacional – de processos artesanais acoplados a processos digitais em seu trabalho. Portanto, a arte digital não é a negação do passado; ela é sua revitalização em novos estágios da criação. A ilustração digital não deve ser interpretada como uma ruptura com a tradição, o que seria, em si, uma leitura reacionária e conservadora. A colocação que se faz também é eterna: a questão não está localizada na linguagem, digital ou gráfico-pictórico-artesanal, e sim no talento, na criatividade, no discernimento e na cultura do artista que se dispõe a ilustrar para o mais precioso, crítico e fiel público que existe: a criança e o jovem.
A ilustração de livros, o faz de conta e o prestar contas do que se faz à criança e ao jovem
Expressamos com nossas imagens o saber artístico a nossos leitores. Além disso, a ilustração, por não ser uma simples paráfrase do texto, contém elementos e conhecimentos diversos, tais como a antropologia, a indumentária, a sociologia, a história; enfim, as ilustrações nos livros devem ser um antídoto ante a vulgaridade e a massificação da imagem. Aprendendo a ver, a criança aprenderá a ler melhor.
Gostaríamos também de, nestas linhas finais, mencionar um trecho de uma entrevista do escritor Bartolomeu Campos de Queirós, o Bartô, o Fra Angélico de nossa literatura. Dizia ele em uma entrevista: “A memória é o nosso grande lugar. Na memória tem tanto o que vivi quanto o que sonhei ter vivido. Não acredito em memória pura… A fantasia é o que temos de mais real dentro de nós. A fantasia é a minha realidade mais profunda”. E é com essa área límpida, mas nebulosa da memória dita pelo Bartô, que reverenciamos e homenageamos os que nos antecederam. E também aqueles que estão de nosso lado e os que estão por vir. Realmente não temos antepassados na ilustração de livros que nos levem aos séculos XV e XVI, como os europeus. Mas pouco importa. Esta é a nossa história que agora estamos construindo. E é melhor mesmo que os nossos antecessores estejam bem próximos de nós, ao alcance de nossos braços, pois dessa forma podemos enlaçá-los em um grande abraço, fraterno e grato.
Nota do autor: O título deste texto é uma modesta e pequena homenagem ao grande ilustrador brasileiro Seth (1891-1949), pseudônimo de Álvaro Marins, autor do álbum ilustrado O Brasil pela imagem, publicado em 1945. Essa obra monumental, realizada unicamente em primoroso bico de pena, continua insuperável na história da ilustração brasileira. Ao concluir o livro, que lhe tomou muitos anos de trabalho, o artista declarou que o fizera por amor a seu país.
Nota do editor: Este texto foi publicado originalmente em A arte de ilustrar livros para crianças e jovens no Brasil, catálogo editado pela FNLIJ em 2013.
Imagem: foto da exposição “Brasil – incontáveis linhas, incontáveis histórias”, organizada pela Fundação Biblioteca Nacional em parceria com a FNLIJ em 2014.