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A poesia da imagem

A obra literária de Odilon Moraes, o entrevistado deste episódio do projeto “A arte de fazer livros”, se constrói e se desdobra para além das imagens. O artista é um leitor ávido e um dos principais nomes do livro ilustrado no Brasil, um formato que, apesar de recorrente na Europa e nos Estados Unidos, ainda tem buscado o seu espaço por aqui.

Autor de Rosa, publicado pela Olho de Vidro e vencedor dos prêmios FNLIJ e João-de-Barro, Odilon Moraes falou sobre a descoberta da ilustração, o processo criativo e a ideia de silêncio que percorre os seus livros.

Você costuma dizer que o seu pai pintava muito e falava pouco. De que maneira a relação com o seu pai e a relação do seu pai com a arte ajudaram na sua formação como artista, inclusive na sensibilização do olhar?

Quando achei que a minha profissão era ilustrador, e a minha vida era fazer ilustrações de livros, eu tive uma espécie de volta ao passado para entender de onde vinha essa minha relação com a arte. Para mim, isso levou muito tempo. E acho que para algumas pessoas isso nem é tão importante assim. Mas foi muito importante para mim. O ilustrador – o que ele faz? – interpreta, à maneira dele, uma história. Então, você pensa: qual é a diferença entre um ilustrador de livros e o Rubens quando estava pintando uma cena mitológica? Ou o Leonardo da Vinci quando estava pintando A última ceia – uma cena religiosa, mas também uma pintura que narra uma cena de ficção ou, pelo menos, de interpretação? Qual a diferença, então, com alguém que interpreta a história da Chapeuzinho Vermelho? De certa maneira, a ligação do pintor, em alguns casos, é muito forte com a criação de um lugar quase literário. Eu lembro que, quando era pequeno, o meu pai tinha duas coleções de livros: a coleção Gênios da pintura e uma coleção de mitologia. E foi ali que aprendi tanto a pintura quanto a leitura, no sentido de ler ficção, de me interessar por ficção. Lia as histórias nos livros de mitologia e ia buscar nos pintores quem tinha interpretado de maneira diferente uma mesma cena. E, por isso, eu falei do Rubens. Lembro perfeitamente de quando vi uma cena de O julgamento de Páris – em que aparecem a Afrodite, a Juno e a Minerva. E aí, eu ia buscar outros artistas e falava: “Ah, gosto mais da pintura do Rubens”. De certa maneira, tem um pé meu nesse “entre”. E acho que o ilustrador está nesse “entre”, porque ele não é ligado diretamente à palavra – o vocabulário dele é de imagens –, mas não é – eu não considero – um filhote das artes plásticas. Acho que esse lugar, o “entre”, demorei muito tempo para descobri-lo. Às vezes, achava que queria ser pintor, mas ao mesmo tempo – e aí eu voltar à relação com o meu pai – fui descobrindo que não era a pintura pela pintura, era exatamente esse outro lado: a pintura como possibilidade de discurso. Era como se eu estivesse contando para o meu pai o que via, e ele me contando o que via. Era como se a gente estivesse confrontando mundos. A gente não estava interessado na pintura, mas na conversa. E a imagem que conversa é a ilustração. Acho que a ilustração, de certa maneira, sempre interpreta algo – mesmo que seja em silêncio. Ela usa o próprio silêncio como eloquência.

As pessoas confundem um pouco silêncio com vazio.

E não é. Na literatura, não é de jeito nenhum. Na literatura, aquilo que você não fala faz parte do discurso. Aliás, o grande escritor não é o que sabe colocar palavra, mas o que sabe cortar palavra. Por isso, eu acho que o ilustrador, de certa maneira, entra no terreno da literatura quando a gente trata de livro ilustrado. Aí, para mim, a ilustração entrou completamente no espaço da literatura. A imagem se desdobra em sequências e, nessa hora, é que nem cinema. A fotografia é o congelamento do instante, e o cinema é o contrário, é a construção do tempo. A ilustração tradicional é também o congelamento do instante narrativo, a gente pode dizer. Quando você entra no livro ilustrado, não. A imagem como fragmento passa a construir a si própria a partir dos fragmentos. Ela não é mais o congelamento. Os fragmentos se juntam para construir o ritmo.

Quando você fala dessa camada do tempo, eu penso no Lá e aqui, em que você conseguiu construir muito bem essa ideia do tempo e do movimento dentro da história por meio da ilustração.

Você tem toda razão. Para mim, dos livros que fiz, o Lá e aqui é o que eu mais gosto da coreografia, que é como o ritmo de palavra e imagem foi sendo organizado.

No Ismália também, não?

É a mesma coisa. O Ismália [poema de Alphonsus de Guimaraens] tem uma questão do tempo que, inclusive, no próprio objeto ficou mais evidente. Eu lembro que, quando a gente foi definir o que era o Ismália, muitas pessoas falaram que era um livro-objeto ou um poema-objeto. Acho essa classificação um pouco incoerente, porque, para mim, no livro ilustrado não existe o objeto à parte. No caso do Ismália, não foi assim: “Eu vou fazer um livro com sanfona”. Foi ao contrário. Foi a partir de uma leitura do poema, que fala o tempo todo de lua de cima, lua de baixo. Chegou um momento em que me dei conta de que o meu boneco [protótipo do livro] não podia abrir para o lado, tinha que abrir para cima. Olha só como o objeto já começou a fazer parte do negócio. Como é que o movimento para o lado pode dar ritmo a um poema que o tempo todo fala da lua de cima e da lua de baixo? Não fazia sentido. Era quase contra o poema. O próprio objeto entrou no jogo do poema.

É uma ressignificação da própria história, da literatura em si.

Eu falo que no livro ilustrado o objeto é de tal forma incorporado à história que não pode ser separado sem prejuízo para a obra. Você pode ter um Ismália de outro jeito, mas vai ter um prejuízo dessa leitura. Essa é que é a questão do livro ilustrado: um mais um não é dois. É maior do que a soma.

É uma experiência à parte ler um livro que tem a sua própria espacialidade.

Tanto que, quando falam para mim que o livro ilustrado é para criança, eu falo que o livro ilustrado é para leitor de livro ilustrado. Nesse tipo de livro, a imagem contradiz a palavra, traz informações que a palavra calou ou distorce a palavra, e vice-versa. Não adianta só olhar a imagem. Agora, você pode falar de temáticas. Tem temáticas mais adultas… Assim como o cinema, como os quadrinhos. Acho que é outra linguagem. É preciso formar leitores de livro ilustrado, entender que é necessária outra atenção na leitura desse tipo de livro, outra posição do leitor, que talvez ele não esteja acostumado.

Eu acho que essa confusão de que livro ilustrado é para criança apenas, quem sabe, tenha uma raiz na questão de que ela é muito mais contemplativa que o adulto. Ela consegue se dar esse tempo de olhar a imagem com o tempo que a imagem necessita, enquanto o adulto olha a imagem na pressa e a despreza.

É uma mistura de pressa com desprezo. As pessoas falam que somos tão visuais hoje em dia, mas não é exatamente isso. As pessoas são visuais, mas de uma visualidade objetiva. Ser visual não quer dizer saber ler imagem. No livro ilustrado, a beleza da imagem é exatamente a pluralidade de sentidos, que traz a poesia. Eu ouvi um poeta falar que queria a libertação das palavras do sentido original, do sentido público e daria a elas novos sentidos. Tem um crítico de livro ilustrado que gosto muito, um inglês. Ele fala que o livro ilustrado nasceu dentro do universo infantil – ainda que hoje você possa pensar nele como uma linguagem – e que o leitor criança é um leitor que está no início das coisas. Isso tem muito a ver com o Manoel de Barros, que fala que o poeta e a criança moram na semente da palavra. A semente da palavra e o início das coisas são ideias muito próximas. Às vezes, uma criança não consegue chamar alguém de baixinho e falar que ele tem um metro e meio de altura. Fala que ele tem um metro e meio de “baixura”. A criança talvez não consiga conceber que a palavra “altura” possa designar alguém baixo. Então, cria um neologismo para designar a ideia de alguém baixo. No meu livro Pedro e lua, a criança vê a pedra, olha a lua e fala: “Caiu de lá”. Não tem outra explicação para ela. A pedra caiu da lua e deve ter saudade de voltar para lá. É um tipo de literatura que você tem que desconfiar do que está lendo, e tem que desconfiar do que está vendo. No livro ilustrado você pode começar falando que a menina ganhou um capuz vermelho e o capuz na imagem está verde. Você vai passar o livro inteiro encucado até descobrir – eu vou inventar agora, esse livro não existe – que no final o narrador é daltônico.

Quando você fala sobre confrontar, me vem à mente um pouco daquilo que a gente aprende na escola, de que não pode haver contradição, de que todos os elementos de uma narrativa são pragmáticos. O livro ilustrado – a literatura em geral também – brinca com essa ideia da verdade e do que está posto.

É bem como você falou: toda a literatura tem essa liberdade. Porém, o livro ilustrado tem uma faceta curiosa para um ilustrador, ou para alguém desse universo, porque ele brinca com a relação entre a palavra e a imagem. Para mim, ele enriquece a experiência de leitura, no sentido de que você tem que ficar pulando de uma página para a outra para entender essa brincadeira. Você sabe que pode estar sendo posto à prova. Tem até um livro maravilhoso, Black and white [de David Macaulay], que é tão complexo que já começa advertindo: “Nesse livro é preciso tomar muito cuidado com as informações que vêm das imagens e que vêm das palavras. Pode ser que você entenda isso, pode ser que você entenda aquilo, mas é tudo isso e não é nada disso. Preste muita atenção nas duas e nunca confie nelas”. Ele já começa assim, advertindo, mas isso faz parte da narrativa do livro. Eu acho que isso é muito perspicaz. A primeira coisa que o ilustrador de livro ilustrado tem que aprender é a perder o respeito. Não falo no mau sentido, mas é que antes tinha aquela ideia de que a ilustração significa correspondência. No livro ilustrado, se você tiver esse respeito, não acontece história. Se você não resolver se desviar e pegar outro caminho, não acontece nada. Você tem que desrespeitar. Se mandou vir para cá, eu vou para o outro lado, e lá no final a gente vai se encontrar. Eu acho que tem um respeito à história mais do que o respeito ao texto. No Brasil, se nós seguíssemos o mesmo caminho da música popular, da melodia e da poesia, do Tom Jobim e do Vinicius de Moraes, se nós tivéssemos essa qualidade de dupla, nós seríamos autores de livros ilustrados incríveis. Na música, tem essa qualidade da parceria. No livro ilustrado, a qualidade é a do encontro, não é mais um fazer solitário.

Você falou bastante de concepção. Como é que nascem os seus livros? Como surgem essas parcerias com os autores de texto?

Bem, primeiro, é muito diferente quando não é um livro ilustrado, quando é um livro tradicional. Eu me ponho na posição de um intérprete, lendo aquela história e interpretando. Não sou nada mais que um leitor privilegiado. O que estou lendo e estou vendo – o que aquelas palavras estão produzindo em mim –, de alguma maneira, estou colocando nas ilustrações. Quando é um livro ilustrado, e existe mesmo uma parceria, tem dois tipos diferentes. Uma é quando o texto é de outra pessoa, e aí, é que nem a conversa. Quando você conversa com uma pessoa, você tem jeitos de conversar. Às vezes, é um amigo com quem você, no início, não sabe muito bem como conversar, e vai aprendendo. Às vezes, tem uns que são mais difíceis de conversar, mas você vai conversando de outra maneira, com mais silêncio. E é a conversa que vai fazer o livro. Você tem que saber ouvir. Acabei de fazer um livro com o Tino Freitas [a reedição de Os invisíveis]. Ele falava: “Ah, essa frase é importante para mim”. E eu entendia totalmente. Com o Tino, foi assim. Com a Carolina Moreyra do Lá e aqui, foi assim. A Carolina é a minha esposa, e tenho a sorte de ter uma esposa com quem posso conversar também sobre os livros. Tento me projetar no universo do outro com o que eu posso, com o que eu tenho para contribuir. Geralmente, é o ritmo. Gosto de pegar textos como o Casa de passarinho [da Ana Rosa Costa]. Eu vi e disse: “Quero fazer esse livro. Ele tem um ritmo maravilhoso”. É quase uma pessoa dançando. E você quer dançar com essa pessoa. Tem outro livro, O pai da mamãe [de Cristiana Gomes], que é puro ritmo. Até uma pessoa falou que esse livro era tão diferente, era outro Odilon. E não era, é o mesmo Odilon. Bossa nova é bossa nova falando do barquinho e do mar ou falando do quanto é triste a solidão. Eu tenho alguns livros que são pessoais. As pessoas falam “autoral”, mas sou autor dos dois, da imagem e da palavra. Nos outros, em parceria, também sou autor, mas sou autor apenas da imagem. Enfim, chamam de autorais o Pedro e lua, o Rosa, o Olavo. E o que eles têm em comum, acho que é o caos na criação. Às vezes, a liberdade completa assusta mais que um certo limite. Na parceria, você tem que respeitar o outro. O limite estabelece também uma possibilidade de comunicação com o outro. Você não pode falar uma língua que o outro não entenda. O seu universo carece do outro, e isso é de uma complexidade. O Fernando Pessoa falava disso: como é que eu posso traduzir para fora algo que nem para dentro consigo colocar em palavras? Na criação, quando não tenho o suporte do texto do outro, só começo a chamar de livro quando já fiz uns quatro bonecos, porque até então não sabia o que era e o que ia virar. Às vezes, vem uma história que é meio capenga, e vêm uns desenhos no meio da história… O Rosa começou com uma frase que, depois, até caiu. A frase que originou o livro, que ficou cantando na minha cabeça que nem uma cantoria antiga: “Rosa cresceu e virou homem, João virou nome de flor”. Eu ficava cantarolando essa frase, e não tem no livro. Até tem “Rosa cresceu e virou homem”, mas não tem o João. A minha esposa estava grávida, estava esperando o meu primeiro filho. Então tinha toda essa apreensão que falo que é muito masculina, totalmente diferente da feminina. Esse livro nasceu nesse momento de eu tentar entender o que é a relação de um filho com um pai. Fui me lembrar daquelas tardes com o meu pai pintando, onde o silêncio é que abria a possibilidade da nossa comunicação, e não as palavras, porque era por meio da pintura que a gente se comunicava. E como é que isso virou livro? Eu não tenho a menor ideia [risos]. De repente, vinha uma frase, eu escrevia; vinha outra, eu escrevia. Depois colocava tudo na gaveta. Aí, eu desenhava. Cheguei a desenhar um boneco que tinha uma história longa, cheia de jogos de palavras com João, com Rosa, com Guimarães. E aí, lembrei dessa história, “A terceira margem do rio”, que falava de paternidade. Teve até uma hora em que eu cortei tanto que ficou um livro de imagem. Ficou assim na minha gaveta uns dois meses. Mostrei o boneco para o meu editor na época, o Augusto Massi, da Cosac Naify. Ele olhou e disse: “Cadê o texto?”. Eu falei: “Cortei”. E ele respondeu: “Mas a história toda estava no texto”. E era verdade. Tanto é que o Rosa ficou dez anos na gaveta. O livro vai indo e voltando. Tenho tanto o Pedro e lua, que saiu em três dias, quanto o Rosa, que demorou dez anos. Livro meu, nunca prometo para uma editora antes de ele estar pronto. Geralmente, chego para a editora e falo: “O boneco do último livro”. Eu até preciso da parceria com os outros para me acalmar enquanto os meus livros vão amadurecendo. Não conseguiria fazer só livro meu.

A história de publicação do Rosa é muito interessante, não? O livro que ganhou o João-de-Barro é um pouco diferente daquele que seria publicado pela Cosac Naify, que é diferente do que foi publicado pela Olho de Vidro. Por que todas essas mudanças?

Enquanto o livro não é publicado, vai mudando. Mesmo depois de publicado, acontece de, na hora de ser republicado – e eu já fiz isso –, a gente mudar mais um pouquinho. Depois que o Rosa estava anos na gaveta, soube desse concurso, o João-de-Barro, que ia ter, pela segunda vez, um prêmio especial para livro ilustrado. Liguei para a organização do concurso, pedi as informações e mandei o livro. Fiz os bonecos à mão. Eu falava assim: “Isso é livro ilustrado, o concurso é de livro ilustrado, mas, se o adjetivo ‘infantil’ estiver dentro desse julgamento, eu perco. Se o júri entender livro ilustrado como linguagem, estou dentro”. Tinha o maior medo de ser desclassificado. O livro ganhou, ia ser publicado na Cosac e veio uma velha questão, como com o Pedro e lua. O editor, o Augusto Massi, me disse que ia publicar o boneco. Ele abriu a minha cabeça, reforçou esse entendimento de livro ilustrado. No livro ilustrado, o essencial não é o desenho, mas o ritmo que você cria com a sequência de desenhos. Incluí duas páginas por conta do ritmo e, no dia em que o livro ia para a gráfica, a Cosac fechou. E o Rosa voltou para mim. E acho que fiquei mais um ano sem saber o que fazer até que encontrei com o Marcelo Del’Anhol, editor da Olho de Vidro, ou a gente se falou por telefone, não sei, e eu disse: “Você gosta tanto desse livro. E sei que você foi um dos que lutaram por ele no júri (lutaram no sentido de achar que ele merecia o prêmio). Não tem ninguém melhor para cuidar do filho”. Nesse momento, de novo, o livro foi mudando: uma frase aqui, uma frase ali. O Marcelo leu, sugeriu outras mudanças, a gente trocou a ordem de algumas imagens – quase como uma montagem de filme – e foi assim.

A gente tem falado bastante em livro ilustrado, mas acredito que esse formato não esteja claro para todos. Qual a diferença entre livro ilustrado, livro com ilustração e livro de imagem?

Bom, no livro tradicional, principalmente na literatura infantil, a ilustração existe há muito tempo. Desde o século XVII, com o Orbis Pictus, de Comenius, uma espécie de enciclopédia que tinha imagem e palavra, já era entendido, na educação, que a imagem é um apoio para desenvolver o raciocínio da linguagem. Nesse tipo de livro, está lá a interpretação de um ilustrador. É como você falar na fase dos grandes crooners: a beleza está na interpretação deles, e eles não precisam ser os compositores. Esse é o livro com ilustração. Agora, quando você fala em livro ilustrado, é um tipo de narrativa. A palavra “ilustrado” aí torna o livro uma outra coisa. É algo que nasceu dentro da literatura infantil – e se discute muito se precisa mesmo ficar só nesse território – e que é um tipo de narrativa que envolve não só a palavra, envolve também outros aspectos do livro. Por isso é que se chama livro ilustrado. Tudo do livro pode estar contando a história: o formato dele, o modo de abrir, o desenho, a palavra. Tudo é ingrediente de uma história. Então, você tem que entender a leitura como algo maior que a compreensão da palavra. No livro tradicional, a palavra não precisa ser acompanhada por imagem, tudo está nela. No livro ilustrado, a palavra tem uma parte da história, e a outra parte está em outros elementos. Muitas vezes, pode nem ter palavra. E, quando não tem, esse livro ilustrado vai se chamar livro de imagem. Mas ele é um livro ilustrado. É como você falar de cinema mudo. O cinema mudo está dentro do cinema.

Além do seu trabalho como ilustrador, você é também um grande leitor – a formação do artista e a do leitor começaram como que ao mesmo tempo, por sinal. Quais são os autores de literatura que o formaram como leitor?

Quando falo da minha formação como autor de livro ilustrado, incluo autores que me formaram nesse modo muito específico de narrar. Eu colocaria, por exemplo, o autor que é considerado o pai do livro ilustrado: no século XIX, Randolph Caldecott entendeu essa dança, como podia contribuir adiantando algumas coisas, escondendo outras. Ele falou que a palavra vai aonde a imagem não vai, e a imagem vai aonde a palavra não vai. E isso é o livro ilustrado. Essa é, até hoje, a melhor definição de livro ilustrado. Do ponto de vista da forma, para mim é Caldecott. Sou louco pelo Maurice Sendak e pelas experiências dele, por Shel Silverstein. Dos brasileiros, gosto da Angela Lago. Mais até do que a obra, o pensamento dela. Acho que ela foi a autora mais rica do ponto de vista da forma do livro ilustrado. Acho que é, inclusive, de uma riqueza que eu não vi em outros pensadores fora do Brasil. Do ponto de vista do conteúdo, acho que sempre tem autores que são quase como se você se sentisse em casa. Tenho muita proximidade com a poesia. Dá até para ver isso pelos autores que eu cito: Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges. Tem um argentino que se chama Roberto Juarroz. Gosto de tantos textos dele. René Char – que usei na epígrafe de um livro – e Paul Celan, que quase usei em outro. Quem me alimenta são esses autores. No Brasil, Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado, Clarice Lispector. Guimarães Rosa especificamente no caso do Rosa, em que eu queria fazer uma conversa com o conto “A terceira margem do rio”. Lógico, um monte de autores ficou de fora.