Blog

Os direitos autorais e a pirataria de livros

O mercado editorial brasileiro, nos últimos anos, tem atravessado momentos delicados. Não bastasse a vertiginosa transformação do varejo do livro, acentuada pela crise que atingiu duas das maiores redes de livrarias do país, a Cultura e a Saraiva, e também pela entrada da Amazon no mercado tupiniquim, oferecendo descontos impossíveis de serem acompanhados pelas concorrentes nacionais, as editoras, os autores e os demais profissionais envolvidos na produção de obras literárias precisam lidar com uma ameaça silenciosa e quase invisível: a pirataria.

A situação chegou a tamanha gravidade que, em dezembro do ano passado, a Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR) conseguiu na justiça a derrubada de duas plataformas dedicadas ao compartilhamento ilegal de livros. Juntas, elas somavam aproximadamente 10 mil títulos. Essas iniciativas – lembra a especialista em direito autoral Sintia Mattar – são criminosas e ferem a Lei de Direito Autoral (LDA – Lei 9610/98) vigente no Brasil. “A LDA concede aos criadores – escritores(as), artistas plásticos(as), ilustradores(as), tradutores(as), fotógrafos(as), entre outros – prerrogativas exclusivas de utilização e exploração comercial de suas obras”, explica.

Os escritores recebem em média 10% sobre o preço de venda do livro como remuneração de direito autoral. Em alguns casos, esse valor pode ser dividido com ilustradores e tradutores. Portanto, quando as obras são pirateadas, toda a cadeia de produção do livro sofre as consequências. Segundo estimativa não oficial, para cada livro digital vendido no Brasil dez são compartilhados de forma indevida por meio de sites e de páginas em redes sociais criados, especialmente, para esse fim.

Para Tomaz Adour, editor da Vermelho Marinho e presidente da Liga Brasileira de Editoras (Libre), entidade que congrega mais de 150 editoras, é o direito autoral que garante, além do “salário” do escritor, a bibliodiversidade, isto é, a possibilidade de termos um mercado plural e que contemple diversas linhas de pensamento e de conhecimento. “É o direito autoral que permite ao escritor continuar escrevendo suas obras”, comenta.

Mariana Warth, editora da Pallas, é da mesma opinião. A produção de uma obra é, antes de tudo, um esforço coletivo, capaz de gerar renda e trabalho em diversos segmentos da sociedade. “O produto livro é fruto desse trabalho e deve ser defendido. De um livro sai uma infinidade de trabalhos e empregos”, analisa Warth.

Muito antes da internet e da ideia de pirataria digital, Osman Lins (1924-1978), autor de Lisbela e o prisioneiro, se mostrava preocupado com a precariedade do trabalho do escritor no Brasil. No ensaio Guerra sem testemunhas: o escritor, sua condição e a realidade social, publicado em 1969, Lins refletia sobre a criação literária como uma experiência de fácil acesso aos abastados, evidenciando a impossibilidade de boa parte dos artistas viver de sua obra. “Podemos, em sã consciência, atribuir nobreza a um ato só acessível a indivíduos socialmente privilegiados?”, escreveu.

Passadas mais de cinco décadas, o olhar de Osman Lins continua a reverberar. Se naquela época o que impedia a literatura de estar ao alcance daqueles que desejavam escrever era a negação da criação literária como um trabalho integral – um resultado direto da desigualdade que moldava a sociedade –, em 2021, para além do abismo que separam as classes, a pirataria contribui abertamente para que autores e autoras não possam tirar seu sustento unicamente dos livros aos quais dão vida.

Mercado editorial

Toda a questão dos direitos autorais esbarra também em uma situação bastante particular: a dinâmica de funcionamento do mercado editorial brasileiro. O calcanhar de Aquiles é o modelo de consignação. Na prática, as livrarias só pagam às editoras os livros efetivamente vendidos. Diferentemente de outros setores da economia, esse tipo de comércio não costuma comprar os produtos que são oferecidos a seus clientes, porém as editoras precisam fazer uma tiragem significativa e pagar por essa impressão antecipadamente para que seja capaz de abastecer o maior número possível de livrarias.

Segundo Adour, esse desenho de distribuição do livro coloca as casas editoriais em uma posição de instabilidade e pouca competitividade. Pagando de antemão os profissionais envolvidos na produção das obras literárias – revisores, designers, preparadores de texto, produtores gráficos, etc. –, os editores precisam esperar a venda dos livros para obter o retorno do investimento.

“O editor é um sonhador, é um batalhador – às vezes gasta mais para participar de uma feira ou uma bienal do que recupera. Eu te diria que todas as editoras estão endividadas, investindo para – quem sabe – receber lá na frente”, avalia Adour. “Por isso que muitas vivem de vender para o governo: entra uma bolada, elas podem investir em outros livros, e daqui a pouco estão endividadas de novo, mas não endividadas por má gestão.”

Para tentar frear os calotes e contornar a demora no recebimento das vendas feitas às livrarias, muitas editoras têm optado por canais próprios, evitando assim os intermediários. Nem sempre é simples, e a pandemia agravou ainda mais o cenário. Com as livrarias fechadas ou com operações reduzidas, boa parte das vendas de livros migrou para o universo digital. Se os livros físicos continuaram circulando de alguma forma, e os e-books cresceram 83% em 2020, a pirataria também teve um salto significativo ao longo do período de isolamento social. Alguns projetos, aponta Sintia Mattar, ainda que bem-intencionados, são equivocados e desrespeitam a lei.

Desde que a covid-19 assolou o país, houve uma avalanche de cópias não autorizadas, sobretudo no formato PDF, compartilhadas nas redes sociais. Na opinião do escritor e tradutor Leo Cunha, muito mais que tirar das mãos do autor os 10% que lhe cabem, a pirataria é responsável por dinamitar todas as etapas de criação de uma obra literária.

Gustavo Faraon, editor da Dublinense, enxerga uma extensão ainda maior: os livros ficam disponíveis para download em sites especializados em pirataria, que lucram com anúncios sem oferecer qualquer contrapartida. De acordo com o editor, as aulas remotas se transformaram em pretexto para a pirataria. “O que vem se repetindo com assustadora frequência desde o começo da pandemia e das aulas não presenciais é o compartilhamento de pastas cheias de cópias ilegais de livros com os alunos”, indica Faraon.

O papel do leitor

A fórmula para equacionar esse problema está longe de ser fácil, entretanto existe um importante aliado: ponto final do percurso de um livro, o leitor é um ente fundamental no combate ao livro pirata. Para Leo Cunha, a justificativa de democratização da literatura por meio de cópias ilegais é uma cortina de fumaça que esconde um esquema organizado e lucrativo. A solução, portanto, é não compactuar com essa conduta.

“Por mais que seja cômodo e tentador acessar e compartilhar arquivos digitais não autorizados, o leitor consciente deve evitar esse uso indevido e, de preferência, denunciar o site ou a plataforma”, enfatiza Cunha. E completa: “Sem o retorno do investimento, as editoras vão diminuir ou paralisar suas publicações, as livrarias vão fechar, os escritores e os ilustradores vão perder seu trabalho”.

No contexto atual, tão importante quanto apoiar autores, editoras e livrarias independentes, é valorizar os clubes de leitura, as bibliotecas públicas e outros espaços culturais que disponibilizam seus acervos aos leitores. Nesse prisma, Mariana Warth ressalta a necessidade de os educadores se colocarem como articuladores desse diálogo. “Acho que deveríamos ter campanhas constantes para explicar ao leitor. E isso deveria começar nas escolas e com os professores”, declara.