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Energare…

Eu devia ter por volta de quinze anos quando meu pai me levou num sebo no centro do Rio de Janeiro, onde morávamos então. Era a primeira vez que eu entrava nesse tipo de comércio, e de fato nem sabia de sua existência. Muito cedo percebi que o mundo ao meu redor era ameaçador, que o medo me ocupava por inteiro cada vez que precisava me exilar de mim mesmo. Repetindo uma história que já foi contada por muitas e muitas pessoas, especialmente por escritoras e escritores, eu me defendia daquelas ameaças e daquele medo entricheirando-me na leitura. Para minha sorte, cresci num ambiente repleto de livros. Meu pai sempre gostou, e ainda gosta, de estudar, assim como gostava, na juventude, de ensinar português, um ofício que foi obrigado a abandonar quando, para sustentar a família, se tornou bancário. Além das gramáticas e dicionários que habitavam nossas estantes, eram muitos os títulos de sociologia, filosofia, história, além, é claro, da literatura clássica (ainda me lembro dos volumes pequenos e grossos, de capa dura marrom com letras douradas, de uma coleção que trazia a Odisseia, a Ilíada, a Eneida e, sobretudo, O elogio da loucura, de Erasmo, que li aos onze anos, fascinado, mesmo sem entender nada).

Encarcerado na timidez quase doentia, a leitura se tornou uma obsessão, e a demanda por mais e mais livros se tornou um problema para o orçamento familiar, sempre vigiado na ponta do lápis de quem tinha de dar conta das necessidades de uma prole de quatro filhas e três filhos. Os parentes sabiam disso, e no aniversário, no Dia das Crianças e no Natal os presentes que eu ganhava eram invariavelmente livros. Mas a voracidade do leitor empedernido exigia sempre mais. Por isso, aos quinze anos, meu pai me fez conhecer os sebos, onde era possível encontrar de tudo a preços condizentes com nossos comedidos haveres.

Entre algumas obras adquiridas nessa primeira visita veio um exemplar de Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, que meu pai me convenceu a levar para casa porque tinha na capa o nome do tradutor, ninguém menos do que Machado de Assis. E assim foi que se inaugurou um mistério que até hoje me assombra.

Em casa, ao folhear o romance de Hugo traduzido por Machado, topei de repente com uma tira de papel que, imaginei, devia ter sido usada pelo dono anterior como marcador de página. Sem dúvida tinha sido recortada de uma folha pautada de caderno, pois trazia duas linhas azuis muito sutis. No intervalo entre as linhas, escritas com letra firme, inclinada para a direita e em tinta preta, decerto de caneta-tinteiro, ocupando toda a extensão da tira, estavam as palavras energare urc crea soltri smare. Nessa época eu já estudava francês e me interessava por tudo o que dizia respeito às línguas humanas: quantas eram, onde eram faladas, que parentesco tinham entre si, como eram escritas etc. No mesmo Colégio Pedro II onde aprendia francês, também aprendia latim, porque eu frequentava a última escola pública em que era obrigatório o ensino da língua de Horácio. Foi o que me levou a supor que aquela frase estava escrita em latim, e que energare e smare só podiam ser verbos (e da primeira conjugação!).

Copiei a frase no caderno que usava nas aulas de latim e fui consultar o professor Cícero, um nome que para mim revelava o poder mágico das palavras, a capacidade que elas têm de prever o futuro. Afinal, como o mesmo professor tinha nos ensinado, os romanos acreditavam em nomen omen, isto é, “o nome é um presságio”. Só muito mais tarde fui descobrir que aquele Cícero não homenageava o célebre orador romano, mas sim o não menos célebre padre que foi canonizado pelo povo do Ceará, de onde vieram os pais do professor.

O professor Cícero leu a frase e logo decretou: “Latim não é”. E acrescentou: “Esse crea poderia ser o espanhol crear, na terceira pessoa do singular do presente do indicativo, ou creer, também espanhol, na primeira ou terceira pessoa do singular do presente do subjuntivo. Mas do resto não faço a menor ideia”. Muita gramática e nenhum solução, suspirei.

Sempre ansioso por descobrir o que significam as palavras (neurose que cultivo até hoje), decidi recorrer à professora de português, dona Mariá (sim, uma Maria oxítona), que se orgulhava de ter estudado na Itália e se apresentava como “filóloga”, o que para nós era quase um título de nobreza. Ela achou graça da frase: “Energare e smare parecem verbos do italiano, mas não são. Esse soltri podia ser o plural de soltro, mas soltro não quer dizer nada na língua de Dante”. Mas, logo em seguida, pronunciou a frase em voz alta e disse: “É um decassílabo, você reparou nisso?”. Fazia pouco que ela nos tinha feito estudar o capítulo de uma gramática intitulado “Noções de versificação”, para absoluto estupor da turma. E para total deslumbramento meu, que jurava de pés juntos e mãos postas que já era um rematado poeta. “É mesmo”, reconheci, “é mesmo um decassílabo”. “E com acento rítmico na sexta sílaba”, ela emendou. “Decassílabo heroico”, fiz questão de acrescentar, para alegre surpresa de dona Mariá. Mas a descoberta da métrica não resolvia o enigma.

E foi a partir de então que comecei a importunar toda e qualquer pessoa que me parecesse remotamente capaz de decifrar aquelas palavras. Tive mesmo a ousadia de escrever uma carta a Paulo Rónai, autor dos livros didáticos de francês que eu usava na escola, e pioneiro dos estudos da tradução no Brasil. Afinal, sendo húngaro, falante de uma língua que parecia vinda de outro planeta, e conhecedor de outras quantas, sem dúvida me ajudaria naquela investigação. Pois não ajudou. Numa carta escrita com letra miúda e delicada, ele me respondeu, com as palavras mais gentis do mundo, que aquilo não era húngaro, nem finlandês, nem basco, nem samoiedo, muito menos lituano. Nova decepção.

Tratei de ler a frase ao contrário: erams aerc irtlos cru eragrene. Tinha uma cara inegável de coisa celta. Mas nenhum especialista nas línguas dessa família soube reconhecer ali o que quer que fosse de gaulês, bretão, córnico ou goidélico… E assim transcorreram os anos, o século acabou, iniciou-se o novo milênio. E nada.

Guardei a tirinha de papel com a frase desafiadora, muito nítida, emoldurada entre duas plaquinhas de vidro, para que não se degrade com o tempo. Volta e meia ela aparecia em meus sonhos, ora escapando dos lábios cerrados de uma estátua, ora como o ruído do mar que se abate sobre os rochedos, ora como o grito que põe em marcha uma revolução… Tive mesmo a ilusão de vê-la escrita no céu, formada por nuvens em fuga, ou no canto escuro de uma parede da sé de Braga, em Portugal. Mas, repito, foram ilusões.

Assim que começou a revolução da internet, uma amiga me sugeriu: “Joga na rede”. Corri para fazer isso, mas logo interrompi a digitação. Por que dissolver o mistério que, em sua opacidade irredutível, me anima um pouco os dias e as noites, quase sempre tão desprovidos de graça? Por que represar o tortuoso riacho que nasceu em Victor Hugo, escorreu por Machado de Assis e continua a fluir, entre margens estreitas e sombrias, por minha vida adentro?

Assim, suplico a quem porventura ler esta crônica que, se tiver decifrado a mítica frase, guarde para si o segredo e só me revele quando eu estiver à beira do inexorável abismo, pronto para mergulhar no nada a que estamos destinados. Quem sabe então energare urc crea soltri smare nem precise de tradução e seja a fórmula nada mágica que nos abre as portas do vórtice final.