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Espelho, espelho mau…

Conheci recentemente a pesquisa da professora Regina Dalcastagnè, da UnB, dedicada a estudar e classificar os modelos sociais construídos pela literatura brasileira contemporânea. Ler os resultados da pesquisa foi como olhar para um espelho… mas, ao mesmo tempo, para uma lente côncava, que nos mostra tudo invertido.
Por um lado, eu me senti o retrato cuspido e escarrado do típico escritor brasileiro. Afinal, como relata a professora Regina, 72,7% dos escritores são homens, 93,9% são brancos, 78,8% possuem ensino superior, 36,4% são jornalistas (a profissão mais presente). Sou um clichê ambulante, concluí. Carrego todas as características listadas acima.
Para piorar, Regina mostra que a idade média dos autores nacionais é 50 anos, e eu estou nos 51. Chega a ser constrangedor…
Mas aí passei para a outra parte da pesquisa, que tabula as características dos personagens dos livros nacionais. E aí fui salvo do consenso. Senão vejamos…
Regina mostra que 62,1% dos personagens (e 71,1% dos protagonistas) da literatura brasileira são homens. Nos meus livros, mais da metade das protagonistas são mulheres: a Guta de Em boca fechada não entra estrela, a Nina de Na marca do pênalti, a Isabela de Uma aventura no sonho, a pianista Cecília de A menina da varanda, as duas rainhas de Era uma vez um reino adormecido, a Arca em Quase tudo na Arca de Noé, todas as personagens de Castelos, princesas e babás, entre outras. Mesmo em alguns livros que têm nomes masculinos no título, a personagem principal é uma mulher, ou menina: a Lelê em Dedé e os tubarões, a escritora Sylvia Orthof em Joselito e seu esporte favorito.
Fiquei analisando os motivos de eu ter escapado do típico perfil dos personagens da literatura nacional e cheguei à conclusão de que o mérito não é meu. Quem me salvou, ora ora, foi a paixão pela literatura infantil. Foi ter passado a infância e a adolescência mergulhado num universo onde a presença tanto de autoras quanto de personagens femininas é incomparavelmente maior do que na literatura adulta. Claro que li muito Ziraldo, Pedro Bandeira, Orígenes Lessa, Ganimedes José, Joel Rufino, João Carlos Marinho. Juntas a eles, porém, em pé de igualdade, estavam Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Sylvia Orthof, Edy Lima, Maria Heloísa Penteado, Lúcia Machado de Almeida, Elvira Vigna, Mirna Pinsky, Marina Colasanti, Lúcia Pimentel Góes, Odete de Barros Mott e outras tantas.
O universo de personagens da literatura infantil tem outras peculiaridades, é claro, para além do gênero dos protagonistas. Por exemplo: na literatura adulta, apenas 0,4% dos personagens são animais; e só 1,3%, entes sobrenaturais; na infantil, esses números são muito maiores, sem dúvida. O que esperar de um mundo repleto de fábulas e contos de fadas, pleno de monstros, bruxas, magos, bichos, plantas e outros seres (lembrei agora o maravilhoso As letras falantes, do Orígenes Lessa)?
Fiquei com vontade de ver uma pesquisa focada na literatura infantil: qual o perfil de quem escreve os livros, e que tipos de personagens as escritoras e escritores criam? Desconfio que o resultado seria bem diferente desse traçado – de forma brilhante, por sinal – pela professora Regina. Alguém se habilita a encarar essa pesquisa?

Imagem: Victor Dragonetti.