Dona Margareth de Fátima sentia indisfarçável orgulho da estante que ornamentava a grande sala de estar do apartamento com sacada no décimo segundo andar, de onde se avistava a praia internacionalmente famosa quase de uma ponta à outra. Era um móvel de linhas modernas, clean, todo feito de vidro fosco com encaixes de metal dourado nos ângulos das prateleiras, folhas de sutil cristal que se elevavam do piso ao teto.
Tinha visto aquela peça numa revista de decoração, daquelas que constituíam sua quase exclusiva leitura, junto com as revistas especializadas em turismo, indispensáveis para os meticulosos planos de viagem que traçava durante meses à espera das férias do marido cirurgião, recém-empossado na direção de um importante hospital privado.
A imagem daquela obra de arte tinha sido para ela uma verdadeira epifania e por pouco não lhe sobrevieram lágrimas aos olhos. A parede maior da sala estava impiedosamente desocupada desde que eles, fazia pouco, tinham se mudado para o cobiçado prédio, mudança que ela considerava como o testemunho mais fiel e palpável da ascensão do marido, e consequentemente da sua, no restrito círculo social composto pelos grandes da hierarquia médica. Era imperioso que Dona Margareth de Fátima cumprisse com seu dever de criar um ambiente perfeito que refletisse aquela nova etapa de suas vidas. O vazio da grande parede a atormentou, mesmo no sono, por muitas semanas. Até que viu a sublime estante na revista e fez de tudo para que o marido a adquirisse, por um preço que ele julgou desproporcional à relação custo-benefício. Mas por que ela não poderia ter aquela estante preciosa enquanto ele se permitia ocupar as cinco vagas da garagem com automóveis que só saíam de lá para a rua em ocasiões muito bem calculadas?
Quando a estante finalmente chegou – foram quase três meses da encomenda à entrega, pois era uma peça feita sob medida, com material importado –, Dona Margareth de Fátima experimentou uma das mais agudas felicidades de sua vida. Tratou imediatamente de preencher algumas das prateleiras com os mesmíssimos objetos estampados na foto da revista que, generosa com suas leitoras, informava o nome das lojas que vendiam cada um dos delicados ornamentos.
Mas logo topou com um problema: os livros. Sim, porque, na estante que a revista exibia, as prateleiras (étagères, dizia a legenda da foto) eram preenchidas por livros de vários tamanhos e formatos (mas sempre com lombadas que percorriam os variados tons entre o branco e o preto, passando por incontáveis matizes de cinza). Dona Margareth de Fátima nem de longe conseguia se imaginar de livraria em livraria com a foto da revista na mão para tentar obter cada uma das obras. Tinha de encontrar uma solução. Mas nenhuma lhe ocorria.
Mesmo com a estante incompleta, Dona Margareth de Fátima cedeu à tentação de convidar as amigas para um chá da tarde a pretexto de mostrar a elas o apartamento recém-adquirido, já plenamente decorado. O encontro seria também uma forma, que lhe pareceu conveniente e simpática, de se apresentar às esposas de alguns dos médicos do hospital que não conheciam ainda a mulher do novo diretor.
A reunião foi um sucesso. Dona Margareth de Fátima sorveu junto com o chá e o naked cake os muitos elogios prestados ao apartamento e à decoração. Quando alguém louvou a magnificência da estante, Dona Margareth de Fátima se viu na obrigação de confessar, com um suspiro de quase autocompaixão: “É linda, sim, mas ainda faltam os livros, e eu juro que me dá preguiça só de pensar no trabalho que vou ter. Eu bem que podia ir comprando aos poucos, ajeitando um livro hoje, outro amanhã, mas eu sou ansiosa e impaciente, quero sempre tudo pronto o mais depressa possível”. E baixou o olhar, com envergonhada modéstia. Para quê? Dona Margareth de Fátima não poderia jamais prever as consequências daquela sincera e desinteressada revelação de um traço pouco lisonjeiro de sua personalidade.
No dia seguinte, no final da tarde, o marido chegou trazendo um pacote muito bem embrulhado. Disse que alguém tinha deixado na portaria uma encomenda: “É pra você. Não sei o que é, mas é pesado”. Dona Margareth de Fátima fez o marido depositar o volume sobre o tampo da mesa de jantar. Tinha um cartão preso sob o laço de fita dourada. Ela leu: Querida Margarette, aceite essa humilde retribuição pelo delicioso momento que você nos proporcionou ontem em sua residência adorável. Com amizade, Jéssica.
Dona Margareth de Fátima, mais curiosa do que aborrecida com a grafia incorreta de seu nome, tratou logo de desfazer o embrulho, com todo o cuidado para não rasgar o lindo papel de presente. Para sua absoluta surpresa, era um livro, um livro grande e volumoso, capa branquíssima, brilhante, e letras em alto relevo, pretas, para o título em inglês: The Most Extraordinary Castles in Europe. Mas quem era Jéssica? Decerto uma das mulheres que ela tinha conhecido ontem, mas não se lembrava exatamente qual. Telefonou para Deise, com quem tinha alguma intimidade, contou a ela o acontecido e se informou sobre a identidade da responsável por aquele gesto de refinada gentileza. Dona Margareth de Fátima instalou o imponente livro na estante sem ao menos folheá-lo. Sentou-se no sofá para admirar a novidade. Agradeceu a Jéssica do fundo do coração.
Mas aquela surpresa foi apenas o início de uma autêntica revolução. Nos dias que se sucederam, mais e mais livros foram chegando, uns competindo com os outros em sofisticação e bom gosto, livros de arte, de fotografia, de cinema, de design de móveis, livros que reproduziam acervos de grandes museus, retratos de pessoas famosas, automóveis vintage, livros em inglês, francês, italiano e espanhol, estes últimos um tanto menos luxuosos que os outros, na opinião abalizada de Dona Margareth de Fátima, que dedicou especial atenção aos nomes dos doadores.
E não ficou só nisso. O marido passou a trazer do hospital outros tantos livros, oferecidos agora já não pelas esposas, mas pelos próprios médicos, informados por elas das necessidades da mulher do diretor. Aquela verdadeira enxurrada obrigou Dona Margareth de Fátima a reorganizar as prateleiras ocupadas pelos objetos de decoração, que tiveram de ser distribuídos por outros lugares do apartamento para ceder espaço aos livros que não paravam de chegar.
Quando já não havia lugar na estante nem sequer para um solitário cartão-postal, Dona Margareth de Fátima telefonou a cada uma das senhoras, agradeceu-lhes penhoradamente e comunicou, com ênfase calculada na voz, que a tarefa estava concluída. Ordenou ao marido que fizesse o mesmo com os colegas e subalternos do hospital.
Uma noite, antes de se recolher ao quarto, Dona Margareth de Fátima contemplou a adorada estante, cujas linhas delicadas, cristalinas, quase desapareciam, subjugadas por aquela centena e meia de volumes que ela decerto jamais conseguiria ler, se quisesse. Foi ali então que se decidiu: daria um fim em pelo menos metade daqueles livros para poder recuperar os espaços antes destinados aos valiosos objetos de decoração, injustamente banidos para lugares onde perdiam todo brilho e se rebaixavam a meros enfeites sem personalidade própria. Apagou a luz da sala e foi dormir.
No meio da madrugada, um estrondo reverberou pelo apartamento, fazendo Dona Margareth de Fátima e o marido saltarem da cama, assustados. Ao chegar à sala, viram a catástrofe: a estante tinha desmoronado, tudo era uma confusão de livros espalhados e vidro espatifado.
Dona Margareth de Fátima teve de ser atendida às pressas no serviço de cardiologia do hospital.