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Ausência

Pensei um bocado no modo como deveria iniciar esta crônica. Indo direto ao assunto? Pedindo desculpas aos leitores por fugir aos assuntos convencionais de crônicas sobre leitura? Encarar a fuga ao assunto como redação de vestibular: pronta para um descarte? Escolhi, depois de algumas noites insones, advertir os leitores e deixá-los livres para interromper a leitura logo após as primeiras linhas.
Advertência feita e autorização concedida, anuncio que esta crônica irá tratar de decoração. Mais em miúdos: lançará um olhar em detalhe para os móveis!
Recebo em casa – sem solicitar nem assinar – uma revista bem colorida, feita com capricho, bonita mesmo e com ares de alta burguesia, tendo como assunto exclusivo arquitetura e decoração.
Aposto que nos leitores acendeu a luz da compreensão: “Claríssimo! Taí a fonte do inusitado assunto da crônica! Bem, vou parar de ler. Nada a ver decoração com um site editorial que propõe leituras de literatura”.
Paciência, leitor, me conceda generosamente um voto de confiança. Proponho a você que adote uma posição desafiadora, do tipo: “Quero só ver como a crônica vai juntar lé com cré!”. Se você assim proceder, agradeço por continuar a ler. Debitarei esse voto à inclinação que você tem pela curiosidade. Ponto positivo para um bom leitor.
Explico-me então. As páginas da dita e referida revista estavam recheadas de salas, quartos, cozinhas, varandas, salas de TV e nenhuma biblioteca. No máximo, um escritoriozinho new fit- look clean: mesa, computador, luminária e um monte de badulaques – lindos, caros e supérfluos – em uma estante envergonhada, com pretensões a um mostruário de loja de decorações. Nenhum livro! Acredito que nem de madeira era a estrutura da microestante: no máximo um MDF levinho e descartável.
Me flagrei buscando naquele esboço de possível lugar de leitura um outro móvel. Algo sisudo, sóbrio, forte, com prateleiras arqueadas, mal suportando o peso de livros. Na verdade, sonhava com minha madeleine proustiana. Lugar de leitura para mim evoca meu primeiro maravilhamento: um móvel em imbuia, com portas de madeira e vidro, que anunciavam o conteúdo, sem o entregar de imediato. Assim como querendo provocar o desejo. Sabe, aquela coisa proibida que atrai exatamente por ser proibida? O móvel não era meu, os livros nem eram para minha idade, o dono nem soube de minha visão gulosa e desejante. Um daqueles emproados senhores da lei, que se valem dos volumes obesos para alardear seu vasto conhecimento. Aquela estante ocupava o lugar central da casa e sinalizava aos visitantes que ali estava um senhor poderoso, dominador de páginas e volumes e estantes.
Em minha percepção, infantil e atordoante, somente tinha olhos para os livros misteriosos, alinhados pela lombada, com títulos indecifráveis, guardados – quem sabe à chave – por portas meio transparentes, meio resistentes em suas molduras de pesada madeira. Árvores no móvel, árvores nos livros, árvores de conhecimento frutífero a fornecer abrigo ao cérebro, à sensibilidade, às emoções, à compreensão do mundo, como vim a descobrir anos depois.
Portas tais quais donzelas pudendas que anunciassem deleites em recatadas e sedutoras transparências. Livros que convidassem esta leitora a abri-los e neles mergulhar. Livros para acariciar, cheirar, devorar com os olhos, experimentando em suas páginas o esplendor amoroso.
Um móvel de coração. Foi assim que ele passou à minha história.
Acordo do curto-circuito. Na volta à realidade, meu olhar pousa no ousado e moderno new look MDF com ânforas, porta-retratos, cachepôs, animais em cerâmica e mil e um objetos espetaculosos e indefiníveis.
Inadmirável mundo novo.