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Muito além da Noruega

A-ata, ata-cad, cad-com, com-enc, enc-gar, gar-iso, iso-mal, mal-nor, nor-pom, pom-sai, sai-ter, ter-zyr. O menino está parado na frente da estante. Com a ponta do dedo indicador, vai tocando de leve a lombada de cada um dos grandes volumes de capa dura e recitando em voz baixa a estranha parlenda: a-ata, ata-cad, cad-com, com-enc, enc-gar, gar-iso, iso-mal, mal-nor, nor-pom… Ah! É aqui! Desloca o livro com o mesmo indicador em gancho, puxando a parte mais alta da lombada em sua direção. Quer ler sobre a Noruega, e as informações que procura só podem estar ali, no volume 9, porque o nome do país começa com nor-, mas tem logo depois um u, letra que fica bem no finalzinho do alfabeto. O volume 8 vai até nor, mas se o nor prossegue no volume seguinte, é óbvio que Noruega só pode estar no 9. O menino pega o livro, grosso e pesado, de capa cinzenta com letras douradas, e vai até a mesa da sala. Põe o livro sobre o tampo de madeira. Senta-se numa cadeira, move a capa dura para a esquerda e começa a folhear. Não demora a encontrar a Noruega desejada e mergulha de imediato na leitura. Mas, como todos os dias, sua curiosidade vai levá-lo para muito além de Oslo (que ele aprende que já se chamou Christiania), dos fiordes, das ilhas Svalbard, da lenda de Peer Gynt, do teatro de Henrik Ibsen e da música de Edvard Grieg. O que mais está guardado no resto do volume, naquelas páginas repletas de ilustrações coloridas, impressas num papel brilhante, espesso, como ele até então nunca tinha visto antes? E ele navega da Noruega até a Pomerânia, imóvel, por longas horas, enquanto as palavras lhe entram pelos olhos, filtradas pelas lentes dos óculos, e se instalam como podem na praia virgem em que caem.
Durante muitos anos, vinte pelo menos, pratiquei esse ritual, iniciado no mesmo dia em que os livros chegaram, de absoluta surpresa, na nossa casa em Madureira. Surpresa para mim, porque a coleção tinha sido encomendada por minha mãe algum tempo antes a um dos representantes daquela valente categoria profissional, hoje extinta, que atendia pelo nome de “vendedor de enciclopédia”. Eu tinha nove anos, já me sentia um estrangeiro na vida, não encontrava um lugar que me coubesse no mundo dos homens e, para escapar dele, me refugiava no seu melhor simulacro: a leitura. Um mundo que se parecia com o mundo, que não o refletia propriamente, mas que o recriava – sob formas que eu considerava muito melhores do que as reais – com aquelas peças minúsculas chamadas palavras, que se acumulavam aos milhões dentro de cada livro. Uma enciclopédia, em doze fartos volumes, com mais de sete mil páginas, onde se guardava todo o conhecimento da humanidade (conforme prometia meu pai), era nada menos do que a máxima realização de um desejo que eu nem desconfiava existir na minha inconsciência de criança. Decidi que ia me apoderar de toda aquela enormidade, que recolheria na memória até o mínimo grão de saber encapsulado naquelas páginas. Pretensão absurda e desmesurada, leonina, projeto impossível, mas que teve consequências positivas inesperadas.
Aquelas leituras obsessivas, que se prolongavam por horas a fio, criaram raízes profundas na memória da criança ainda em formação. Muito do que aprendi com essa enciclopédia permanece, perdura, persiste como as incalculáveis teclas de um piano sempre afinado: basta tocar uma delas para que sua nota ecoe, límpida, certeira, e preencha o espaço da recordação. Ainda hoje me surpreendo quando, sem fazer muito esforço, uma palavra, uma data, uma imagem me ocorre de repente, trazida à tona pelos movimentos incessantes da maré das lembranças que acumulei naquela época. Quer saber os nomes das cinquenta unidades da federação que compõem os Estados Unidos? Me dê uma folha de papel que eu escrevo, puxando o balde do fundo do poço onde esses nomes aguardam convocação.
O linguista que me tornei também deve muito às descobertas que fiz ali. O primeiro volume da enciclopédia trazia muitas páginas que explicavam o valor das letras e dígrafos em diversas línguas. Onde mais eu descobriria que o xh do albanês se pronuncia como o j do inglês job? Ou que o s simples do húngaro soa como o nosso x de xícara? Além disso, a enciclopédia trazia muito daquilo que se chama, na lexicografia, de “elementos de composição”: prefixos, sufixos ou radicais que servem para a formação de palavras novas. Foi lá que aprendi, por exemplo, que grad, em diversas línguas eslavas, significa cidade (daí Leningrado, Volgogrado, Belgrado etc.), e que o inglês ford significa vau, trecho raso de um rio que se pode atravessar, de modo que Oxford é o vau dos bois! Logo que comecei a ensinar na Universidade de Brasília tive uma aluna polonesa. Ela uma vez me perguntou se eu sabia o que era bagno em polonês. Respondi que sim, que significava pântano, conforme eu tinha aprendido na minha velha enciclopédia. Aliás, por algum tempo, na infância, andei dizendo que meu sobrenome não era italiano, como muita gente acreditava (e como de fato é), nem que significava banho ou, pior, banheiro (coisa que até hoje me desagrada), mas que vinha da remota Polônia e tinha aquele sentido misterioso, de lugar sombrio e perigoso, enevoado e úmido, povoado de sons emitidos por estranhas criaturas.
Em 1998, a mais que bicentenária Encyclopaedia Britannica demitiu seus últimos vendedores, aqueles personagens que iam de porta em porta oferecer as maravilhas do conhecimento. As enciclopédias e outras obras de referência tinham migrado para o formato do CD-ROM, o que as tornava muito mais fáceis de consultar, muito mais baratas e, claro, incomparavelmente menos volumosas: dezenas de volumes num único disco! Hoje em dia, nem mais isso temos: as fontes de consulta migraram todas para a internet, democratizando muito mais o conhecimento, apesar de ainda somente 44 por cento da população ter acesso à rede mundial de computadores.
Hoje, se eu quiser saber mais sobre a Noruega, posso encontrar milhares de informações em poucos segundos, posso ler textos, assistir vídeos e ouvir documentos sonoros, interagir com mapas virtuais, receber notícias em tempo real, conversar com gente de lá. Viva! Quanto à minha velha enciclopédia, à qual devo tanto, ela continua a ter seu lugar de honra na estante. De vez em quando, abro um volume ao acaso, reconheço fotos, figuras e mapas e me sinto, por uns breves instantes, lançado de volta àquele tempo em que, instigado por uma curiosidade que até hoje me mobiliza, eu recitava, nas tardes quentes de Madureira, a parlenda que, como uma senha, abria para mim o sésamo das palavras, da vida e do mundo: a-ata, ata-cad, cad-com, com-enc, enc-gar, gar-iso…

Imagem: Adieu, Guy Laramée.