Casa

Aqui não mora ninguém. Quem aparece só está de passagem. Nesta casa que não se fecha, pode-se entrar e sair a qualquer momento. As paredes são janelas que se expandiram desmesuradamente. O telhado, com o crescimento das janelas, deslocou-se para um alto intangível. Aqui, circula-se livre pelos cômodos sem divisórias. Quem chega pode trazer, além de bagagem e mobília, seus próprios corredores, vãos, batentes, umbrais.
Esta casa abriga outras casas. Também as desabriga: quando o visitante vai embora, desaparecem a lareira que aquece o sussurro dos amantes, a despensa que esconde a mercadoria contrabandeada, o piso retumbando sob os passos do jovem intrépido, o quartinho que torna aconchegante o sono da copeira, os ambientes onde se narram as histórias. Tudo se dissolve, restando somente um espaço delimitado, quatro ângulos sobre os quais o antigo hóspede edificara, e o hóspede novo edificará, sua moradia ambulante.
A fundação desta casa primeira está preparada para receber várias casas superpostas. Essencial é exatamente a base, a partir da qual cada morador pode definir volumes, erguer alicerces feitos de uma argamassa riquíssima: ânsia, pensamento, desejo e distração que uma liga de palavras modela com capricho.
No aparente vazio deste domicílio se pode compreender, com total intensidade, o sentido de habitar. Basta que alguém penetre neste recanto, e o adote como seu. Se o eventual habitante escolhe portas que rangem, gelosias que batem durante a tempestade, paredes que não abafam o rugido de animais ferozes, mesmo assim algo o conforta: a sensação de saber onde está. Afinal, apesar de provisória, esta é uma casa. Uma modesta casa de forasteiros, com seu plano branco de janelas infinitas e leves armações verbais. Mas nestes quatro ângulos retos há um abrigo, sempre pronto para acolher o viajante que se prepara para a mais sinuosa aventura, ou que dela deseja retornar.

Tablados: livro de livros, Editora 7Letras, 2004

Imagem: House book, Valerio Vidali.