Toda terça, quinta e sábado, tinha crônica do Carlos Drummond de Andrade na última página do caderno de cultura. Minha mãe conta que eu acordava antes das seis e corria pro portão de ferro, onde o jornaleiro, de moto, lançava o Diário da Tarde, enroladinho. Eu tinha oito, nove, dez… quinze, dezesseis anos… e a minha primeira leitura era sempre a crônica do Drummond.
O jornal tinha outros cronistas, claro, mas Drummond era o que mais me fascinava. Como conseguia escrever crônicas divertidas, surpreendentes, poéticas (às vezes as três coisas no mesmo texto) três vezes por semana? Como escrever mais de seis mil crônicas ao longo da vida e não ficar sem assunto?
Tempos depois topei com um de seus livros, chamado De notícias e não notícias faz-se a crônica. Estava tudo ali, naquele título: o cronista busca seus temas no noticiário, naqueles acontecimentos que estampam as páginas dos jornais, seja porque são muito importantes, ou muito inusitados, seja porque podem mudar a vida de um país, uma cidade, um bairro, uma rua, algumas pessoas.
No entanto, como lembrava o título do livro, o assunto da crônica também pode estar na não notícia. Naquele assunto bem desimportante, corriqueiro, trivial. Nos pequenos detalhes do dia a dia, nas bobeirinhas, nas futilidades. O próprio Drummond escreveu certa vez, na crônica “O frívolo cronista”: o estopim para uma crônica pode muito bem ser “um pé de chinelo, uma pétala de flor, duas conchinhas da praia, o salto de um gafanhoto, uma caricatura, o rebolado da corista, o assobio do rapaz da lavanderia”. Coisas tão banais que mal mal mudam a vida de uma pessoa, quanto mais de uma rua, um bairro, uma cidade, um país!
Anos e anos depois, eu me pego não apenas jornalista, como também professor universitário. A disciplina se chama Jornalismo Especializado, e eu, claro, puxo a brasa para a editoria de cultura. Entre os conteúdos da matéria, não posso deixar de reservar algumas aulas para a leitura, o debate e a criação de crônicas. Senão seria uma traição ao meu amado cronista das terças, quintas e sábados.
Conto pros alunos a minha historinha dos anos 70: o portão de ferro, o jornaleiro de moto, o Drummond de Andrade, o Diário da Tarde. O meu antigo prédio já foi demolido, as notícias chegam hoje pela internet, o cronista morreu há trinta anos, de tristeza, e o próprio Diário foi varrido do mapa, substituído por um desses tabloides cheios de sangue e mulheres seminuas na capa, e nenhum lirismo na última página.
Mas, comemoro com a turma, pelo menos a crônica continua firme, em vários jornais, revistas, sites, blogs. Até os próprios alunos escrevem boas crônicas, às vezes sem se dar conta, em suas postagens no Facebook. Vamos lá, pessoal? É pra semana que vem, de uma a duas páginas, tema livre, valendo 10 pontos.
– Ah, professor, valendo ponto é mais difícil! – reclama um aluno, no canto da sala. – O senhor acha que alguém dava nota pras crônicas do Drummond?
Eu dava. Toda terça, quinta e sábado. Nota 10. Porque o difícil, o extraordinário, não é escrever seis mil crônicas, como o Drummond. É escrever uma crônica como ele.