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Os povos indígenas e a identidade nacional

O escritor Daniel Munduruku é uma das vozes mais ativas na divulgação da história dos povos originários, principalmente na escrita de livros voltados às crianças e aos jovens. Em mais de 50 títulos publicados, alguns deles traduzidos para outros idiomas, resgata as tradições de inúmeras comunidades indígenas de todo o país, oferecendo aos leitores um contraponto ao que normalmente se aprende na escola sobre esses povos. Em uma conversa franca para o projeto “A arte de fazer livros”, Munduruku comenta a importância das artes para a preservação da cultura das populações indígenas e reflete sobre a formação da juventude a...

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A linguagem do indizível

A literatura de Marina Colasanti é a da construção mágica de universos por meio de uma poética muito particular. Autora de mais de 50 livros de diversos gêneros literários e tradutora de muitos outros, recebeu prêmios nacionais e internacionais, como o Prêmio Ibero-Americano SM de Literatura Infantil e Juvenil, e foi indicada ao Prêmio Hans Christian Andersen. Em entrevista ao projeto “A arte de fazer livros”, ela repassa a sua carreira, conversa a respeito do processo criativo de suas obras, debate o papel fundamental das bibliotecas comunitárias na formação de novos leitores e reflete sobre o futuro da literatura. Quando...

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O Brasil pela imagem: a ilustração de livros e o passado colonial

Ao iniciarmos este texto sobre o longo trajeto das imagens narrativas em nossos livros para crianças e jovens, temos que excluir, antes de tudo, mas sem ignorá-los, os traumas de um passado colonial, que dão margem às depreciadoras comparações tão comuns, como ao se dizer que, enquanto na Inglaterra, em 1789, William Blake publicava o livro Canções da inocência, uma obra referencial no que tange à relação entre palavra e imagem, nós amargávamos na época, diferentemente das colônias hispânicas, a proibição do uso da impressão tipográfica. É verdade que esse entrave cultural se prolongou por três séculos, por todo o...

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Pensando com traços

O ilustrador e escritor brasiliense Roger Mello é um desbravador das linhas e das formas. A sua produção ficcional é resultado de inúmeras experiências estéticas e também de suas reflexões sobre a construção da imagem e a sua relação com a palavra. Premiado com o Hans Christian Andersen, o mais importante para a literatura infantojuvenil no mundo, é um sujeito eloquente e estudioso, capaz de transformar as suas viagens em literatura. Da inquietação tão íntima nasce o desejo de compartilhar seus pontos de vista e suas elucubrações sobre as voltas que dá ao redor do mundo. Roger Mello é mais...

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A literatura, o chamado “universo infantil” e a vida mesmo

Aproveito este espaço para apresentar alguns pontos e dúvidas que têm sido importantes para mim, não só como autor de livros para crianças e jovens há mais de vinte anos, mas também como pessoa tentando compreender a vida e o mundo. Nossa tradição cultural tem pressuposto a existência de um “universo infantil”, que se configura em oposição a outro, o “universo adulto”, ambos tratados como fatos naturais, nítidos, lógicos e indiscutíveis. São conhecidas as diferenças entre adultos e crianças: adultos costumam ser capazes de pensar abstratamente; podem ter maior capacidade de concentração e de trabalho; fisicamente são mais fortes do...

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Em busca do texto potencial

A produção artística de Aline Abreu é movida pelos gestos e pelas sensações que envolvem as páginas dos livros. As texturas, as cores e os detalhes são elementos fundamentais para compor as suas histórias. Com uma carreira que se desdobra a partir das artes visuais, a artista – chamá-la de “autora” ou “ilustradora” poderia criar um certo reducionismo – construiu um modo muito próprio de fazer livros, explorando as espacialidades da página e as muitas interpretações da palavra. Seus livros estão para além de uma leitura literária em um sentido mais estrito e se revelam como um olhar para o...

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A ilustração do livro de literatura infantil no Brasil: um brevíssimo panorama

De acordo com o professor, pesquisador e ilustrador Rui de Oliveira (2008, p. 65-66), O patinho feio, publicado em 1915, é considerado o primeiro livro infantil ilustrado e editado em quatro cores no Brasil, destacando ainda que, na data da publicação, não constava na capa o nome do ilustrador Francisco Richter, mas apenas o do escritor Hans Christian Andersen e do coordenador da coleção Arnaldo de Oliveira Barreto. Além disso, Oliveira (2008, p. 65-66) enfatiza que as ilustrações, “já naquela época, tinham uma comunicação não linear, própria da linguagem imagética”. A crítica literária Laura Sandroni (2013, p. 13) acrescenta que...

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Um exercício de criatividade e empatia

O mineiro Leo Cunha é um escritor profícuo: em três décadas de literatura, já produziu mais de 70 livros, incluindo títulos infantis, juvenis e colaborações. O segundo entrevistado do projeto “A arte de fazer livros” tem a fala mansa, mas afiada, e o jeito traquina de quem conhece bem as crianças. Mergulhando no universo dos pequenos, construiu uma obra que atravessa os mistérios e os encantamentos, que valoriza as descobertas e as amizades. Seus livros são, antes de tudo, um exercício de criatividade e empatia. O escritor – organizador e tradutor de Balada da estrela e outros poemas, de Gabriela...

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O atrativo e o nutritivo: fatiando ideias sobre livros, leitores e escola

Vivemos numa sociedade de consumo e, em nosso contexto, numa época de excessivo culto ao corpo – corpo que se alimenta cada vez menos. Se pensarmos na leitura, não é diferente. Levar o texto literário para ser saboreado pelas crianças em tempos de dieta é um grande desafio – função, em grande parte, desempenhada pelos professores. São eles que necessitam estar bem informados para propiciar uma refeição nutritiva aos seus alunos, não só dos clássicos, mas também das novas publicações que o mercado editorial apresenta. Essa oferta começa na seleção dos ingredientes. Como são escolhidos os livros para as crianças?...

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A poesia da imagem

A obra literária de Odilon Moraes, o entrevistado deste episódio do projeto “A arte de fazer livros”, se constrói e se desdobra para além das imagens. O artista é um leitor ávido e um dos principais nomes do livro ilustrado no Brasil, um formato que, apesar de recorrente na Europa e nos Estados Unidos, ainda tem buscado o seu espaço por aqui. Autor de Rosa, publicado pela Olho de Vidro e vencedor dos prêmios FNLIJ e João-de-Barro, Odilon Moraes falou sobre a descoberta da ilustração, o processo criativo e a ideia de silêncio que percorre os seus livros. Você costuma...

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Os direitos autorais e a pirataria de livros

O mercado editorial brasileiro, nos últimos anos, tem atravessado momentos delicados. Não bastasse a vertiginosa transformação do varejo do livro, acentuada pela crise que atingiu duas das maiores redes de livrarias do país, a Cultura e a Saraiva, e também pela entrada da Amazon no mercado tupiniquim, oferecendo descontos impossíveis de serem acompanhados pelas concorrentes nacionais, as editoras, os autores e os demais profissionais envolvidos na produção de obras literárias precisam lidar com uma ameaça silenciosa e quase invisível: a pirataria. A situação chegou a tamanha gravidade que, em dezembro do ano passado, a Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR)...

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A arte de fazer livros

O escritor argentino Jorge Luis Borges costumava dizer que o paraíso só poderia ser um lugar parecido com uma biblioteca. Sentimental, ele acreditava que entre as tantas prateleiras estavam todos os mundos possíveis. Assim descreveu o universo em “Biblioteca de Babel”, espécie de conto-síntese do pensamento borgeano. Entretanto, o que esqueceu – ou não mencionou, pois conhecia como poucos os segredos que rondam os livros – é que não existiriam as bibliotecas não fosse quem publicasse os livros. Em algumas vezes invisíveis, e em outras uma chancela de qualidade para as obras que compõem seu catálogo, as editoras são peças-chave...

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O primeiro livro ilustrado da humanidade

Viajar no tempo. Mais de 30 mil anos. Entrar em uma caverna. Dominar o fogo. Ficar acordado à noite. Dançar e fazer música. Contar uma história. Gravar a história nas paredes cavernosas e úmidas. Sobreviver. Em 1994, em uma caverna no sul da França, foi encontrada uma série de pinturas pré-históricas com um espantoso nível de conservação. Não apenas havia cavalos e bisões – como já se tinha visto em outras cavernas –, mas também leões, panteras, ursos, íbex e hienas à espreita... e até uma coruja voava. Talvez fosse parte de um ritual mágico. Foram encontrados fungos, linhas, pontos;...

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Energare…

Eu devia ter por volta de quinze anos quando meu pai me levou num sebo no centro do Rio de Janeiro, onde morávamos então. Era a primeira vez que eu entrava nesse tipo de comércio, e de fato nem sabia de sua existência. Muito cedo percebi que o mundo ao meu redor era ameaçador, que o medo me ocupava por inteiro cada vez que precisava me exilar de mim mesmo. Repetindo uma história que já foi contada por muitas e muitas pessoas, especialmente por escritoras e escritores, eu me defendia daquelas ameaças e daquele medo entricheirando-me na leitura. Para minha...

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Primeiras vezes

Meu primeiro Drummond foi o Drummond político, de flor e estrela rubras, fora do colégio. Agora lembrando disso, revejo os Drummonds que havia em casa e me dou conta de que eram os menos afamados, os mais íntimos: poeta que falava de orgasmos, poeta que se despedia. Meu primeiro Baudelaire, também fora do colégio, foi o poema “A carniça”, bem naquela época da adolescência em que o repugnante e o terrível são coisas que fascinam. O primeiro Camões lírico, igual ao de muita gente, foi o do fogo que arde sem se ver. Nos tempos de faculdade, quis uma professora...

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Espelho, espelho mau…

Conheci recentemente a pesquisa da professora Regina Dalcastagnè, da UnB, dedicada a estudar e classificar os modelos sociais construídos pela literatura brasileira contemporânea. Ler os resultados da pesquisa foi como olhar para um espelho... mas, ao mesmo tempo, para uma lente côncava, que nos mostra tudo invertido. Por um lado, eu me senti o retrato cuspido e escarrado do típico escritor brasileiro. Afinal, como relata a professora Regina, 72,7% dos escritores são homens, 93,9% são brancos, 78,8% possuem ensino superior, 36,4% são jornalistas (a profissão mais presente). Sou um clichê ambulante, concluí. Carrego todas as características listadas acima. Para piorar,...

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Consultório editorial (1)

Minha mesa de trabalho é a oficina do Ão, do Cujo, do Sem Nome. Papéis de todos os formatos, em blocos ou avulsos. Textos fotocopiados e encadernados com capas de muitas cores, espirais, grampos e prendedores. Livros impressos – alguns bem mal-impressos – de diferentes espessuras, de formatos os mais estapafúrdios – muito grandes, diminutos, redondos, com ou sem vazados, em tecido e plástico... Por dentro, ilustrações que vão do desenho medíocre ao regular, do figurativo ao geométrico, de Da Vinci a Romero Britto. Enfim, a mixórdia habitual da mesa de um editor de literatura para crianças. Esqueci de incluir...

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Excesso de gentileza

Dona Margareth de Fátima sentia indisfarçável orgulho da estante que ornamentava a grande sala de estar do apartamento com sacada no décimo segundo andar, de onde se avistava a praia internacionalmente famosa quase de uma ponta à outra. Era um móvel de linhas modernas, clean, todo feito de vidro fosco com encaixes de metal dourado nos ângulos das prateleiras, folhas de sutil cristal que se elevavam do piso ao teto.

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Franz e Georges ou dois grãos de milho

Há um lugar na literatura em que os grandes viram grãos de milho. Aqueles altos sobrenomes de lombada dão lugar à miúda letra manuscrita. É quando Kafka escreve para o pai e se torna Franz, o filho de Hermann. É quando Simenon escreve para a mãe e se torna Georges, o filho de Henriette. Um pai e uma mãe, diz Simenon, “são dois indivíduos cujos gestos, cujas palavras, cujos olhares são julgados impiedosamente”: há na casa uma criança que os observa. Kafka é essa criança impiedosa quando escreve para o pai. Já um homem, mas um verme aos pés do...

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O pulo da manga e a carta do gato

"Estou escrevendo um livro e não sei como publicar." Já perdi a conta de quantas vezes escutei isso nos últimos vinte anos. São pessoas que desejam o caminho das pedras, o pulo do gato, a carta na manga e imaginam que eu já dominei todos esses clichês, pois estou envolvido no mundo editorial há bastante tempo. Curiosamente, a maioria das pessoas que me faz a tal pergunta deseja publicar obras em áreas sobre as quais eu não entendo patavina: um guia sobre educação financeira para crianças, um livro sobre como organizar as gavetas e prateleiras, um manual de costura inspirado...

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Até aqui, tudo bem!

Na mesa do meu escritório, de onde avisto os prédios do bairro de classe média alta de Higienópolis, do outro lado da Avenida Pacaembu, em São Paulo, há um porta-retrato. Nele, uma fotografia embaçada registra uma estranha composição: em primeiro plano um menino, trajando uma curta blusa de flanela, um desajeitado short e um sujo par de chinelos de dedo, tristes e assustados olhos semifechados. Pousadas em seus ombros magros, duas mãos femininas; ao lado, parte de uma perna de calça e uma barriga, que se adivinha em breve proeminente, indica a existência de um homem (marido das mãos femininas,...

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Fazendo a(de) conta

Em tempos idos de meu magistério em Letras, sempre me causou espécie a justificativa de alguns alunos para a escolha do curso: “É porque detesto matemática!”. Esquecendo a modéstia, devo confessar que sempre fui excelente aluna em números, equações e pensamento lógico. Mas a paixão pela literatura arrastou-me às letras. Ainda sou boa em cálculos. Sei fazer contas de cabeça (atualmente, essa qualidade é um espanto!), sei calcular porcentagem sem calculadoras e brincar de regra de três. Consigo com facilidade ler gráficos e interpretar estatísticas. Curiosíssima, sempre estou à procura de informações e notícias sobre descobertas científicas. A tecnologia me...

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Nove, nove, onze

Tinha plena consciência de que estava vivendo seus últimos dias. A doença que o consumia se recusava a sujeitar-se a qualquer tipo de tratamento. Ele não lamentava nem sofria por isso. Racional até a raiz dos poucos cabelos que lhe restavam, um espírito forjado pelos golpes duríssimos do malho da existência, aguardava com estoica paciência o evento inevitável. Já se desfizera de sua rica biblioteca, acumulada ao longo de mais de meio século. Inútil agora, tinha sido transportada em numerosos caixotes, doada à universidade local. Só conservava em casa, por um sentimento de orgulho que ele mesmo considerava pueril, quase...

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O Mário de Andrade dos meus dezesseis anos

Quando Manuel Bandeira leu o primeiro livro de poemas de Mário de Andrade (publicado há exatamente um século), não teve dúvidas: era um livro ruim. Mas esse ruim não era – digamos – um ruim consabido, evidente, definitivo. Era diferente. Era um “ruim estranho”. Foi aí que Bandeira farejou qualquer coisa a mais que não deixava o tal mau livro passar em branco. Eu era menina quando abri o livrão da poesia completa de Mário, ainda sem saber que a capa de arlequim estava lá para lembrar a primeira edição de Pauliceia desvairada. Livrão da biblioteca da mãe cheio de...

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Meu continente na ilha de Robinson: imagens fundadoras no texto de Daniel Defoe

Para Luiz Percival Leme Britto [...] estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens. Italo Calvino1 I. O naufrágio Foi como deve ser. Apertado junto ao peito, lido, relido, guardado, perdido. De pura inércia, meu pai pedindo que fosse ver os livros antes que ele os jogasse fora, e não fui. Hoje, amanhã, depois, aprendi com ele a adiar, deixar para depois o principal, muitas vezes. Era...

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O novato

A sala de aula era governada pela bagunça. Sobre as carteiras, o material escolar e as mochilas, desordenados, aguardavam o silêncio e os inevitáveis trabalhos que viriam a preencher as horas daquela manhã de sol. Os alunos, ah! estes eram massa confusa de falas, risos, gritos e, de vez em quando, xingamentos e gestos rudes. Nada parecia durar para sempre. Ou melhor, tudo duraria até a chegada do novo professor. Ricardo, o mais destemido, já conseguira algumas informações sobre ele. Diziam que era severo. Diziam que era simpático. Diziam que era disciplinador. Ninguém da sala acreditou. Naquele território mandavam os...

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Literatura infantil: apenas para menores?

Silêncio visual e sonoro. É o que o livro mais pede: um minutinho ou dois (ou muitos mais) de quietude visual e sonora. Ninguém gosta de ler com barulho, com luzes pipocando. Mas onde conseguir uma boa dose de paz e sossego hoje em dia? O rádio e a televisão não fazem silêncio. O tocador de MP3, o aparelho de som, o videogame e o cinema também não. Seria loucura se fizessem, foram inventados justamente para encher nossos olhos e ouvidos de estímulos maravilhosos. Pensando bem, quase nada faz silêncio neste mundo. O livro faz e pede silêncio. Ao menos...

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Filho de peixe

Quem inventou o ditado “Filho de peixe peixinho é” esqueceu de completar: “mas pro peixinho o mar é mais bravo”. Tem um caso que hoje me faz rir, mas na época me deu foi dor de cabeça. Era 1995, eu já tinha uns dez livros publicados. Fui convidado pra visitar uma escola de BH onde a meninada tinha lido um dos meus livros. No início correu tudo bem. O problema é que entrou na sala a diretora da escola e disparou a falar, insistindo que a minha mãe era uma grande escritora, que eu tinha me inspirado nos livros dela,...

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De alunos e de almas

O diálogo Crátilo, de Platão, escrito no século IV a. C., é considerado o primeiro texto da história ocidental a se debruçar sobre o fenômeno da linguagem humana. É uma leitura obrigatória para todos os estudiosos da linguagem e da filosofia. E entre as muitas coisas debatidas nesse diálogo, a que mais espaço ocupa no texto é a da origem dos nomes, ou seja, a etimologia. Os personagens que dialogam entre si apresentam hipóteses sobre as prováveis etimologias de muitas palavras da língua grega, hipóteses todas elas fantasiosas e que fazem rir os linguistas profissionais de hoje em dia. Mas...

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Literatura infantil (2)

É revelador de algum preconceito o fato de que os modernistas de 1922 não tenham se interessado pela literatura infantojuvenil, e que justamente Lobato – o acusado de ser antimodernista – tenha sido aquele que modernizou e instaurou um novo paradigma dessa literatura. Mas há outra observação igualmente reveladora de preconceitos nessa área. E, ao fazê-la, corrijo e amplio o que foi dito na primeira frase. É revelador que entre os modernistas tenham sido duas mulheres as que se preocuparam com a literatura infantojuvenil: Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. Cecília, além de ter produzido poemas voltados para esse público, tem...

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O prazer que há na leitura literária

Quais imagens e palavras costumamos associar à leitura de literatura? Uma busca rápida na internet nos oferece um cardápio sem muitas variações. As imagens de pessoas deitadas em parques, gramados, na praia ou na rede são bastante frequentes, assim como imagens que nos remetem a voos e viagens. E ouvimos por aí, dentro e fora da escola, coladas nos discursos sobre a formação de leitores, as palavras: prazer, gosto, deleite, diversão, viagem. São imagens e expressões que nos fazem pensar na leitura, sobretudo literária, como uma espécie de entretenimento, ideia que tem sido sustentada e reforçada por muitas campanhas e...

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Lendo Tonino Guerra

Tonino Guerra voltava para sua aldeia depois de velho. Mais de trinta anos a respirar o ar de Roma e então, um dia, como na infância antes da guerra, as montanhas, o canavial, o rio, o mel das abelhas selvagens. Conhecia de menino o vale do Marecchia e com alma de menino foi arrepanhando suas histórias. A vida, sendo simples, levava a imaginar. Um copo com água de chuva e a alma do menino sente o gosto dos relâmpagos.

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Livro: coisa de pegar, mexer, fuçar

Sempre tive mãos vorazes. Gulosas. Curiosas. Gosto de tocar nos objetos, sentir as texturas, os materiais, o calor ou frio das coisas. Me dá muita aflição entrar numa loja cheia de placas do tipo "favor não encostar" ou "não mexer nos artigos expostos". Não esqueço uma vez que entrei numa loja de instrumentos musicais e deparei com a inacreditável placa "proibido tocar". Nas livrarias, detesto esses livros que vêm plastificados e não deixam a gente dar uma mísera folheada. Até entendo uma livraria virtual que vende os livros lacrados, "imexíveis" (como dizia, nos anos 90, um ministro do governo Collor)....

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Ausência

Paciência, leitor, me conceda generosamente um voto de confiança. Proponho a você que adote uma posição desafiadora, do tipo: “Quero só ver como a crônica vai juntar lé com cré!”. Se você assim proceder, agradeço por continuar a ler. Debitarei esse voto à inclinação que você tem pela curiosidade. Ponto positivo para um bom leitor.

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Literatura infantil (1)

Várias coisas estão me conduzindo ao tema da “literatura infantil”. Primeiro os celebrados centenários de Andersen e Verne. Depois o fato de ter chegado a mim o livro da espanhola Gemma Lluch, Cómo analizamos relatos infantiles y juveniles (Norma Editorial, Espanha, 2004) – uma bela tese onde disseca não só as produções clássicas do gênero, mas estabelece correlações com a indústria cinematográfica de Disney a George Lucas. Em terceiro lugar, ter ganhado da escritora e mestra Elza de Moura, que foi discípula de Helena Antipoff, uma apostila mimeografada com um histórico texto datado de 1943, escrito por Lourenço Filho –...

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Domingo

André seria o primeiro a chegar ao horto; viria com as crianças, todas com aqueles olhos azuis de doer os nossos ao mirá-los, a calmaria de lagos, mas no fundo o agito dos oceanos: os três já estavam na idade de perguntar tudo, e espalhavam, como conchas, o constrangimento por onde passavam. Depois, seria a vez de Pedro e a menina, os dois quase não falavam, às vezes doía ouvir o silêncio deles, se não fosse o ruído do motor do carro se acercando, ninguém diria que teriam vindo, mas sim se materializado de repente no meio da família. Logo...

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Muito além da Noruega

Marcos Bagno revisita a própria infância para nos contar a história do encontro apaixonado com a coleção de livros grossos e pesados que a mãe encomendou para a estante de casa: “E ele navega da Noruega até a Pomerânia, imóvel, por longas horas, enquanto as palavras lhe entram pelos olhos, filtradas pelas lentes dos óculos, e se instalam como podem na praia virgem em que caem.”

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Casa

Aqui não mora ninguém. Quem aparece só está de passagem. Nesta casa que não se fecha, pode-se entrar e sair a qualquer momento. As paredes são janelas que se expandiram desmesuradamente. O telhado, com o crescimento das janelas, deslocou-se para um alto intangível. Aqui, circula-se livre pelos cômodos sem divisórias. Quem chega pode trazer, além de bagagem e mobília, seus próprios corredores, vãos, batentes, umbrais.

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Uma vida entre amigos

Os livros que pela primeira vez amei eram livros da biblioteca do quarto da mãe. Livros de poesia que me chamavam pelo título, pela capa, por uma página aberta ao acaso. Mário de Andrade. Neruda. Baudelaire. Fernando Pessoa. Maiakóvski. Cecília Meireles. Emily Dickinson. T. S. Eliot. Drummond. Dante. Brecht. Lorca. Assim todos misturados. Depois vieram romances, amores de Alexandria, amores do tempo de Salomão, dos tempos do cólera, guerras do tempo de Nabucodonosor, das colônias, dos impérios, sagas de família, histórias passadas em paisagem de neve, em noites do sertão, nos desertos, na noite das cidades, em quartos alugados, becos,...

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O estopim da crônica

Toda terça, quinta e sábado, tinha crônica do Carlos Drummond de Andrade na última página do caderno de cultura. Minha mãe conta que eu acordava antes das seis e corria pro portão de ferro, onde o jornaleiro, de moto, lançava o Diário da Tarde, enroladinho. Eu tinha oito, nove, dez... quinze, dezesseis anos... e a minha primeira leitura era sempre a crônica do Drummond. O jornal tinha outros cronistas, claro, mas Drummond era o que mais me fascinava. Como conseguia escrever crônicas divertidas, surpreendentes, poéticas (às vezes as três coisas no mesmo texto) três vezes por semana? Como escrever mais...

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Memória: como assim?

Ter boa memória é lembrar todos os fatos e pessoas que estiveram presentes em algum momento da vida? Ter boa memória é alguém ser capaz de esquecer e guardar apenas o que, tendo sido vivido, foi significativo para ele? Ter boa memória é ser capaz de dizer de cor toda a tabela periódica de química, as fórmulas de física, as capitais africanas, os números primos e os diferentes empregos do “que”?

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Para nunca mais esquecer

Durante muitos e muitos anos, guardei comigo uma estranha recordação. Tão estranha que não comentava com ninguém, porque me parecia muito mais a lembrança imprecisa de um sonho do que qualquer outra coisa. E era assim: eu, muito pequeno, caminhava ao lado do meu pai, segurava com força a aba da camisa dele, com medo de me soltar e me perder, porque em cada uma das mãos ele levava uma bolsa com alguma coisa muito pesada. Andávamos por um tempo, já não sei se de dia ou de noite, se íamos por alguma rua movimentada. Mas recordo bem que subíamos...

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