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Nove, nove, onze

Tinha plena consciência de que estava vivendo seus últimos dias. A doença que o consumia se recusava a sujeitar-se a qualquer tipo de tratamento. Ele não lamentava nem sofria por isso. Racional até a raiz dos poucos cabelos que lhe restavam, um espírito forjado pelos golpes duríssimos do malho da existência, aguardava com estoica paciência o evento inevitável. Já se desfizera de sua rica biblioteca, acumulada ao longo de mais de meio século. Inútil agora, tinha sido transportada em numerosos caixotes, doada à universidade local. Só conservava em casa, por um sentimento de orgulho que ele mesmo considerava pueril, quase ridículo, a edição de luxo da tradução que tinha feito da obra-prima da literatura de seu país de origem, uma epopeia da nacionalidade produzida no século XVIII pelo maior poeta da língua.
A tarefa consumiu longas madrugadas durante várias décadas. Era um poema com mais de cinco mil versos, em alexandrinos lapidados com inigualável precisão, com rimas inesperadas e todo um arsenal de referências míticas e místicas, históricas, geográficas, literárias, com anagramas disfarçados a desafiar o explorador daquela mina. E a sonoridade? Quando falava da água, as palavras escorriam, gotejavam em sílabas de pura malemolência líquida. As descrições de batalhas feriam os ouvidos com suas espadas entrechocadas e lanças pontiagudas, que refletiam seu brilho mortal nos encontros consonantais traiçoeiros que só existiam naquela língua que desafiava os estudiosos. Os arroubos de sincera devoção religiosa tinham o ritmo e a virilidade dos grandes coros masculinos das igrejas orientais.
Uma vez publicada, a obra recebeu um sem-fim de louvores da crítica especializada do país que o acolhera, ainda jovem, depois de ter escapado das monstruosidades da guerra por um labirinto de rotas duvidosas, em que tudo era desconfiança e receio. Chegou mesmo a ser consultado para ocupar uma vaga na Academia de Letras, convite que ele declinou afetando modéstia, mas de fato porque desprezava o ambiente que, sabia, não passava de uma vitrine de vaidades. Preferia dedicar-se a seu ofício de professor de filologia e de tradutor apaixonado.
Guardava, porém, uma insistente mágoa. Ela provinha do absoluto, pétreo silêncio que lhe dedicava o meio literário de seu país de origem. Sabia que não teria podido esperar nada durante as décadas de triste ditadura que oprimiram seu povo. Mas a situação tinha mudado nos últimos vinte anos, caíram muros, esvaíram-se fronteiras, dos ombros castigados de tanta gente se retirou o peso de chumbo do medo e da desesperança.
Impossível medir, portanto, a espantada surpresa com que recebeu, naqueles dias que julgava os últimos, um envelope com o timbre do Ministério da Educação de seu país natal. Abriu, entre curioso e incrédulo. Leu. Assinada pelo ministro em pessoa, a carta lhe comunicava a publicação da primeira grande enciclopédia nacional, em quinze volumes, da qual constava um verbete com o nome dele, um incontornável ainda que tardio reconhecimento dos serviços prestados à divulgação da literatura pátria em terras estrangeiras. Sua racionalidade empedernida não resistiu à vibração de felicidade misturada a orgulho que experimentou naquele momento.
A carta também explicava que uma caixa com a enciclopédia completa lhe seria enviada em breve, mas não explicitava a data da expedição. A ausência desse pormenor o aborreceu. Não sabiam que o tempo que lhe restava era uma bolha de sabão prestes a estourar? Ainda assim, tomou a decisão, típica de sua mente racional e voluntariosa, de não morrer enquanto não tivesse nas mãos e sob os olhos aquilo que já considerava o coroamento de tantas décadas de trabalho e privações de toda natureza. Queria, a exemplo de Copérnico, expirar com o desejado livro nas mãos.
E assim foi. Lia e relia sua tradução e se dizia, sem modéstia, que aquela proeza, por si só, de fato merecia constar numa enciclopédia. Enquanto aguardava, fantasiava com o prometido verbete. Que informações traria? Qual seria sua extensão? Não acreditava na hipótese de algumas poucas linhas de referências vagas. Decerto era uma descrição detalhada de sua vida pessoal, repleta de peripécias, e de sua vida intelectual, sem dúvida uma das mais produtivas da história intelectual de seus compatriotas.
Passado um mês, um mês e meio, a velha empregada que convivia com ele há décadas na casa no alto da serra se aproximou com um novo envelope timbrado. Ele abriu e leu. Com grande pesar, o ministro – ou quem tinha redigido a carta para que ele assinasse – informava: o navio que transportava a enciclopédia tinha sofrido uma avaria importante e, por isso, estava retido num porto estrangeiro a fim de receber os cuidados necessários para que prosseguisse viagem. Não se sabia ao certo o prazo para que o reparo se concluísse.
O velho tradutor suspirou. Mas não havia remédio senão, mais uma vez, extrair do que lhe restava de força o resíduo de tempo suficiente para a nova espera. E esperou.
Já tinha perdido a conta dos dias, semanas ou meses. Mas resistia. Até que finalmente se deu o momento tão paciente e impacientemente aguardado. A campainha tocou. Em poucos instantes, entrava o carteiro, ajudado por um colega, com quem dividia o peso da grande caixa de papelão reforçado, envolta em vários metros de cordão e fitas de metal.
Diligente, a empregada logo se apresentou com uma tesoura e se entregou à tarefa de abrir a encomenda, no que foi ajudada pelo carteiro e seu colega. O velho tradutor observava, ansioso, aquela operação que lhe pareceu demorar mais do que o necessário. Aberta a caixa, ele pôde ver os quinze volumes de capa preta com letras douradas perfeitamente alinhados lá dentro, com as lombadas voltadas para cima. Com muita dificuldade, com o auxílio do carteiro, ele se agachou diante daquela promessa de uma derradeira alegria. Passou os dedos sobre cada lombada, conferindo as primeiras e últimas palavras que delimitavam o conteúdo de cada volume. Mas sentiu um estremecimento em todo o corpo quando viu que o volume 9 era seguido do volume 11 e não do volume 10. Teriam empacotado a enciclopédia fora da ordem correta? Percebendo a expressão atônita do ancião, o carteiro se agachou ao lado dele e conferiu. “Veja só”, disse o rapaz, “puseram dois volumes 9 por engano e se esqueceram do 10”. Mas no volume 10 é que estaria o verbete com seu nome.
Tomado de um sentimento que não tinha nome em nenhuma das nove línguas que conhecia, o velho tradutor irrompeu numa rouca gargalhada. Riu, riu muito, riu demais, riu até que o ar lhe faltou e ele caiu sobre a caixa, definitivamente morto.