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Memória: como assim?

Ter boa memória é lembrar todos os fatos e pessoas que estiveram presentes em algum momento da vida? Ter boa memória é alguém ser capaz de esquecer e guardar apenas o que, tendo sido vivido, foi significativo para ele? Ter boa memória é ser capaz de dizer de cor toda a tabela periódica de química, as fórmulas de física, as capitais africanas, os números primos e os diferentes empregos do “que”? Ter boa memória é poder rapidamente reproduzir as músicas, ouvidas no streaming, as jogadas clássicas de xadrez e as melhores cenas da HQ de Neil Gaiman ou de Scott Snyder?
As respostas podem ser sim para todas as questões. Podem também ser uma combinação de sins, nãos e talvezes. No fundo profundo, as pessoas sabem de que memória tratam quando dizem: “Ele tem uma memória de elefante” (mesmo que não se saiba exatamente o porquê do elefante, e por que não a formiga ou o rato). Mas é absoluta admiração, com uma ponta de inveja, que faz alguém dizer: “Ela consegue gabaritar a prova de (ponham aqui a disciplina que lhes parecer a mais difícil) porque sua memória é irada, fantástica, super!”.
Estudos científicos cada vez mais acentuam o quanto a leitura pode diminuir o risco de uma doença, como o Alzheimer, que afeta as conexões cerebrais. No entanto, por várias razões físicas (olhos, coluna, enxaqueca, sonolência) e culturais (analfabetismo, desestímulo à leitura), os idosos brasileiros pouco leem. Na outra ponta das biografias, é de supor que os mais jovens leiam. Nem pensar! Os antigos escreveriam: “Ledo engano!”. Sempre achei linda essa expressão, porque pensava na adolescência que Ledo deveria ser o masculino de Leda e o termo seria o nome de um lindo rapaz meio dado a trapaças. Depois descobri, um tanto decepcionada, que “ledo” era uma evolução de laetus, alegre. Pensei então que os enganos podem não ser decepcionantes. Associei à ideia que jovens que não leem são alegres enganos!
Tipo assim: ler toma tempo, e para ler tenho que ficar isolado. Senão não entendo o que leio. A concentração é muito chata porque é preciso deixar de pensar em outros assuntos mais interessantes: os amigos, as baladas, os flertes e tudo o mais. Mas tudo isso é um ledo engano!
A falta da leitura torna as pessoas dependentes da opinião de outros, ou seja, há uma perda de autonomia, que cresce à medida que o tempo passa.
A falta de leitura sujeita as pessoas a verem o mundo e a realidade dentro de perspectivas muito fechadas, o que favorece os preconceitos de todos os tipos.
A falta de leitura me aproxima mais ainda dos animais que não têm visão de futuro: tudo é muito o tempo presente. Para projetar um tempo melhor, são necessárias a informação, a reflexão, a organização e a imaginação. Quem não lê e não sabe dificilmente irá procurar esses atributos na leitura de livros. Sim, porque as redes sociais são lugares de absoluta superficialidade.
A falta de leitura – ocasionada pelas mais diferentes desculpas e subterfúgios – é um ledo engano da juventude viciada no tempo presente e na dependência das tecnologias.
E o que tem a memória a ver com a falta de leitura? Simples. Se começo a ler uma história, preciso da memória das letras, dos significados primários das palavras, de lembrar na página 20 que o personagem tem este ou aquele nome, fez isto ou aquilo, mora em tal lugar. Mas estas informações ficaram na página 7! Se não lembrar, terei de voltar ao começo do livro.
Há pessoas que são verdadeiros ledos da memória: decoram versos, trechos de livros, nomes de autores, títulos de obras, contam até partes da biografia dos autores! Não preciso tanto. Mas, se continuar a ler, certamente terei o que contar, porque, se a memória não me falha, tudo o que escrevi acima aprendi nos livros que li e guardei essas ideias de memória.
Guardei até o engano da palavra “ledo”! Aprendi também que a memória tem uma entidade protetora, que se chama Mnemosine e vem lá dos gregos. Bem que ela poderia se chamar Leda, a alegria.

Imagem: Adrian Tomine (detalhe).