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Literatura infantil (2)

É revelador de algum preconceito o fato de que os modernistas de 1922 não tenham se interessado pela literatura infantojuvenil, e que justamente Lobato – o acusado de ser antimodernista – tenha sido aquele que modernizou e instaurou um novo paradigma dessa literatura. Mas há outra observação igualmente reveladora de preconceitos nessa área. E, ao fazê-la, corrijo e amplio o que foi dito na primeira frase. É revelador que entre os modernistas tenham sido duas mulheres as que se preocuparam com a literatura infantojuvenil: Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa.
Cecília, além de ter produzido poemas voltados para esse público, tem uma série de textos teóricos, alguns dos quais originados de conferências patrocinadas pela Secretaria de Educação de Minas Gerais, em 1951, e que podem ser encontrados no livro Problemas da literatura infantil. Já Henriqueta, também educadora, que sempre morou em Minas e era amiga de Cecília, publicou em 1961 pelo saudoso Instituto Nacional do Livro a Antologia poética para infância e juventude, onde fez uma coisa nova e instigante: meteu na antologia autores e textos tidos geralmente como textos para adultos, seja de Drummond, Vinicius, Pessoa ou poetas estrangeiros que ela traduziu.
Há, portanto, uma série de preconceitos e mal-entendidos em torno desse tema. Não apenas que é tido como um assunto para mulheres e professoras, mas que seria um gênero menor. E como estou convencido de que não existem gêneros menores, mas pessoas menores diante de certos gêneros, é que nos anos 70, enquanto diretor do Departamento de Letras e Artes da PUC/RJ, com Eliana Yunes, criamos a primeira cadeira de Literatura Infantojuvenil na graduação e passamos a aceitar teses de mestrado e doutorado sobre o assunto. Hoje, felizmente, existe um notável grupo de ensaístas e professoras em várias universidades brasileiras desenvolvendo um pensamento crítico sobre a questão.
Cecília Meireles toca em algumas questões básicas. Sobre o que seria uma “receita” para se escrever livros para crianças, diz: “Seria um grande alívio obter-se tão sábia receita. Mas poderia acontecer que o leitor se desinteressasse por esse livro sob medida, trocando-o por outros, tidos por menos recomendáveis”. Daí, um aparente paradoxo: “A literatura infantil, em lugar de ser a que se escreve para as crianças, seria a que as crianças leem com agrado”.
Portanto, a boa, a melhor literatura infantil é aquela que não é uma simples historieta ou um esquete pedagógico. Ela tem que ter uma certa magia, ser instigante, mexer com regiões do inconsciente, agregar alguma perplexidade ao leitor. Cecília Meireles diria: “A literatura não é, como tantos supõem, um passatempo. É uma nutrição”. Passatempo são esses livros e filmes que a gente lê e assiste, e quando terminam não deixam nenhum vestígio. Quem os procura, procura neles exatamente o vazio. E o encontra plenamente.
Num sentido diverso deste, referindo-se ao texto que tem algo a nos dar, Lúcia Miguel Pereira refere-se ao nosso “senso poético”, à comunicação “instintiva” que é despertada quando diante de textos autenticamente literários. Ela lembra que, na literatura como na arte, “o impossível não existe”, que para o leitor “o maravilhoso lhe é tão próximo como o cotidiano”, por isto ela denunciava um outro tipo de preconceito que existe (ou existia) em relação aos contos de fada: “Nunca pude entender os pedagogos que combatem as histórias de fadas. Querer expulsar o irreal do mundo infantil é tentar – em vão – empobrecê-lo, amesquinhá-lo; querer subordiná-lo estritamente à lógica é desconhecer o ímpeto da imaginação ainda não sofreada pela vida”. Os melhores contos de fada lidam com arquétipos intemporais, e são tão fortes que pessoas de culturas diversas reagem emocionadamente diante deles.
Mas as necessidades pedagógicas existem. Nem todo professor é suficientemente criativo, a maioria é repetitiva. Por isto, recorrem a certas receitas para facilitar a mediação do aprendizado. Professores deveriam ser submetidos a aulas de criação literária para despertarem e experimentarem dentro de si mesmos a surpresa, a dificuldade e a alegria da criação textual. Assim entenderiam melhor o processo de elaboração poética e lidariam melhor com seus alunos, crianças ou não. Mesmo na universidade nota-se que grande parte dos alunos e professores preferem estudar, fazer teses sobre romances por acharem mais fácil, confessando terem dificuldade em lidar com a poesia. Mais uma razão, portanto, para se aprofundar uma certa educação poética, mesmo porque as melhores leituras dos textos de prosa originam-se da compreensão do que seja uma poética do texto.
Temos nos referido aqui à questão de uma certa literatura explicitamente pedagógica. A rigor, ocorre com tal literatura pedagógica o mesmo que ocorre com a literatura “política” e “partidária”. Poucos autores que praticam esse tipo de produção são capazes de superar o “aspectual”, o circunstancial, ou seja, a bula, e fazer algo mais duradouro. De algum modo, se pode dizer que as consideradas obras de “autoajuda”, que ocupam tanto espaço nas listas de best-sellers, têm um parentesco também com aqueles “temas transversais” recomendados pelo Ministério da Educação, pois têm um vezo pedagógico. As obras de “autoajuda” são obras de reforço, uma terapia imaginária.
Alguém pode, muito apropriadamente, dizer que boa ou grande parte da literatura é também uma forma de autoajuda, que o prazer, o consolo, a companhia, a solidariedade que os leitores encontram em Pessoa, Drummond, Shakespeare, Dostoiévski, Balzac, Proust e Machado são decisivos para alimentar a vida de muitos. Realmente, a alta literatura é também uma autoajuda. Mas com uma pequena correção, e vocês vão me permitir o incontornável e imprescindível trocadilho. A boa literatura é na verdade uma “alta ajuda”, enquanto os textos conhecidos como de “autoajuda”, ainda que ajudem um pouco, por suas limitações, talvez se definam mais como uma “baixa ajuda”.

Imagem: Sarah de Jager.